Aplaudido de pé por cinco minutos em Cannes, drama com Paul Mescal indicado ao Oscar e outros 177 prêmios está na Netflix Divulgação / Charades

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A sutileza nas primeiras sequências de “Aftersun” esconde a complexidade emocional que se desdobra ao longo do filme. Em um quarto de hotel, vemos um pai e sua filha envolvidos em uma conversa íntima. A menina, tentando parecer mais madura do que seus nove anos, observa seu pai, um homem na casa dos trinta, com o olhar inocente e exagerado de uma criança que o vê como alguém muito mais velho do que é. Ela percebe suas manias e os traços de uma melancolia profunda, fruto de um divórcio recente que parece ter deixado marcas em cada aspecto da vida desse homem, como se as dores da separação tivessem se espalhado como uma sombra inescapável.

A diretora Charlotte Wells traz ao filme uma perspectiva pessoal e autêntica, baseando-se em suas próprias memórias para construir os personagens de Calum e Sophie. Essa autenticidade é o que torna o filme tão poderoso e universal. O fato de Wells ter perdido seu pai aos 16 anos, já sentindo a dor da distância, pois morava em Nova York enquanto ele vivia em Londres, confere à narrativa um tom agridoce. O falecimento definitivo do pai é uma ferida que nunca cicatriza completamente e serve de inspiração para as camadas emocionais presentes no filme.

A escrita de Wells equilibra cenas dolorosas com lampejos de esperança, retratando a complexidade dos laços familiares. A união de técnica e poesia cria uma história que é ao mesmo tempo simples e profundamente tocante. O que cativa o público é justamente essa habilidade de transformar situações cotidianas em algo emocionalmente denso, onde o reconhecimento das próprias dores e alegrias é inevitável.

Em uma viagem para a Turquia, Calum e Sophie desfrutam de um tempo raro juntos, hospedados em um resort modesto. Nesse cenário, Wells revela gradualmente o estado emocional de Calum, um homem consumido por suas próprias angústias. Ele luta para manter a compostura, acendendo um cigarro com dificuldade, ainda se recuperando de uma lesão no braço. A pequena adversidade de terem recebido um quarto com uma cama, em vez de duas, poderia ser um ponto de desconforto, mas Calum nem cogita dividir o espaço com a filha, talvez influenciado pelas pressões sociais atuais.

A narrativa não se entrega ao sentimentalismo fácil. Em outra cena, sob o sol de um parque aquático, Calum bebe sozinho no bar, enquanto Sophie encontra uma diversão passageira no fliperama, tentando chamar a atenção de um garoto de maneira desajeitada, mas com a naturalidade de uma criança que começa a explorar as interações sociais. O brilhantismo de Paul Mescal e Frankie Corio é evidente nas trocas sutis de emoções, alternando entre a ternura e a dor, fazendo o espectador compartilhar suas vivências singulares.

Como a diretora, Sophie luta para processar o fim do casamento dos pais. O relacionamento com a mãe, com quem ela mora, está longe de ser ideal, e o desânimo de Calum em relação à sua própria vida fica evidente em seus diálogos vagos sobre abrir um café com um amigo. Ele se agarra a esse sonho improvável, sem, no entanto, convencer nem a si mesmo.

Desde o início, “Aftersun” se posiciona ao lado de Sophie, mas à medida que a trama avança e a versão adulta da personagem, interpretada por Celia Rowlson-Hall, assume o protagonismo, fica claro o desejo de Wells de apresentar sua própria visão dos acontecimentos, tanto os reais quanto os filtrados pelas percepções de uma criança. A fotografia de Gregory Oke complementa essa atmosfera onírica, especialmente em cenas como aquela em que Sophie revisita o passado e observa seu pai perdido em uma pista de dança, envolto em uma espécie de transe, enquanto luzes estroboscópicas cortam o ambiente com uma intensidade quase sobrenatural.

A visão de Calum, dançando sozinho, é dolorosa e pungente. Esse momento encapsula não apenas a tristeza de um homem, mas também as limitações e os sacrifícios que muitos pais enfrentam. Lembranças de minha própria infância vêm à tona, assim como as falhas e inseguranças que os adultos muitas vezes carregam, mas raramente revelam. O filme nos confronta com essa realidade: depois do brilho do sol, vem a escuridão de nossas próprias vulnerabilidades.


Filme: Aftersun
Direção: Charlotte Wells
Ano: 2022
Gêneros: Drama/Coming-of-age
Nota: 9/10