O filme de maior prestígio e reconhecimento da Netflix, curiosamente, está disponível no Brasil apenas no canal Max Divulgação / Netflix

O filme de maior prestígio e reconhecimento da Netflix, curiosamente, está disponível no Brasil apenas no canal Max

“Mudbound: Lágrimas Sobre o Mississippi” é um filme para todas as raças. É impossível assistir ao drama de guerra de Dee Rees e não se lembrar de Martin Luther King Jr. (1929-1968), o reverendo batista que alude ao poeta Langston Hughes (1901-1967), de “Let America Be America Again” (1935), na fúria santa de que era acometido quando conclamava seus irmãos de cor a se engajarem no movimento pela verdadeira libertação do povo negro na América. Nesse discurso, King enunciou seu derradeiro manifesto, em 4 de abril de 1967, exatamente um ano antes de ser assassinado. Entre uma e outra sequência do filme de Rees, muita crítica embalada em sarcasmo, piada com assuntos espinhosos — a desventura de se ter de pegar em armas, inclusive —, comentários de cunho sociocultural e muita reflexão sobre os caminhos que os Estados Unidos vem tomando quanto a deliberar e (não) resolver o problema racial no país, da 13ª Emenda, promulgada em 1865 com o propósito de abolir formalmente o regime escravocrata, a George Floyd (1973-2020), o ex-segurança executado no meio da rua, diante de câmeras de celulares, por Derek Chauvin, um policial branco, hoje cumprindo pena de 22 anos por homicídio doloso.

A adaptação da diretora e Virgil Williams para “Mudbound” (preso na lama, em tradução literal), o romance de Hillary Jordan publicado em 2008, denuncia um conjunto de restrições institucionais para segregar gente vista como inferior por ter uma pele que não corresponde ao padrão da maioria, tanto na esteira da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) como ainda neste 2024. O ano de 1619 marca o começo do negócio de importação de negros escravizados nos Estados Unidos, para a então colônia da Virgínia, estabelecendo, para fins acadêmicos e de localização histórica, o marco zero do sistema escravocrata como instituição legal. A escravidão em território americano resistiu por 246 anos, sobrepujando, inclusive, o movimento pela independência, entre 1774 e 1776, quando as tropas emancipatórias lideradas por George Washington (1732-1799) levaram a melhor nos enfrentamentos contra a Inglaterra, sua metrópole desde 1607. Ironicamente, o processo de colonização dos Estados Unidos pela matriz inglesa deu-se justo pela Virgínia, de onde o domínio britânico se espalhou por todo o país com o êxodo maciço de colonos — mormente os puritanos — a partir de 1620. 

Os Estados Unidos tornaram-se uma nação autônoma em 4 de julho de 1776, livrando-se da subjugação de um reino que, assumidamente, enxergava-lhe tão somente como a providencial fornecedora de recursos naturais para uma ilha de dimensões ridiculamente menores, em que a exígua faixa de solo cultivável era obrigada a sujeitar-se às intempéries de um clima hostil. Rees escrutina duas famílias, os Jacksons, negros, e os McAllans, brancos, com margem para toda sorte de conclusões e reviravoltas, num movimento concêntrico que ela explica depois. Muito da história se fixa em Henry McAllan, um aristocrata decadente forçado a conviver com os Jacksons ao comprar um terreno ilegal. Seu pai racista, Pappy, nunca de instigar-lhe o ódio de que vai se nutrindo, e Jason Clarke vai pontuando o enredo desse sentimento ambivalente e perigoso, enquanto na outra ponta o pastor Hap Jackson, de Rob Morgan, credita a Deus a bênção por essa terra, maldita para o personagem de Clarke, e o embate dos dois homens não demora a eclodir e tomar uma parte considerável do longa, que, por óbvio, é muito mais que isso. E o Mississípi — e Washington — o sabem.


Filme: Mudbound: Lágrimas Sobre o Mississippi 
Direção: Dee Rees
Ano: 2017
Gêneros: Guerra/Drama
Nota: 8/10