Possível ignorância minha, não entendo muito bem em que momento as pessoas passam a ter o direito de chamar as outras de idiota
Certa vez, ouvi o acadêmico Norval Baitello Junior explicando que tudo o que os seres humanos transmitem e recebem passam por um a três graus de compreensão. O primeiro deles é a informação, que basicamente corresponde à maior parte do material a que temos acesso nos dias de hoje. É um conteúdo superficial e genérico. Matérias resumidas e postagens em redes sociais digitais, por exemplo. Em seguida, chegamos ao conhecimento, que faz menção a alguma interpretação a partir da informação, aproveitando o fato de já termos tido contato com outras informações relacionadas. Por último, há a sabedoria, esta que, sim, compenetra intensamente em nossas vidas. A sabedoria é o conteúdo que passou por todas as fases e, de modo mais concreto, colabora com nossas reflexões e decisões.
Muito importante: ele não menosprezou, em momento algum, a vida na superfície das informações. Não sei, na verdade, se ele as menosprezaria longe dos holofotes (ou se encontraria razão para fazê-lo). Talvez seja apenas um acadêmico polido e politicamente correto. Talvez não. De qualquer maneira, ele, conhecedor e estudioso da comunicação social há várias décadas, reconhece o valor da informação e sabe transmiti-la de modo a instigar o debate. Deve entender que atacar as pessoas definitivamente não é o meio mais eficaz de promover mudanças, tanto quanto deve saber que o aprendizado delas provém de diversas fontes, mesmo aquelas às quais podemos não dar tanto valor.
Ele falou sobre isso em uma palestra a respeito das mudanças comportamentais intensificadas pelo advento e popularização do computador e da Internet. Bem sabemos, a Internet é o palco perfeito para que todos virem formadores de opinião aproveitando o gozo da liberdade de expressão que nos é garantida constitucionalmente. Isso pode ser sensacional, pois sabemos, por exemplo, que o jornalismo produzido por grandes empresas de comunicação é plenamente incapaz de suprir a sociedade de tudo o que realmente interessa — pelo volume de conteúdo e por interesses econômicos, editoriais e políticos, entre outros. Por meio de atos ousados, descobrimos realidades escondidas, somos desafiados a analisar novas possibilidades e a estimular o debate.
Deve-se entender que informação, conhecimento e sabedoria podem ser sinônimos de poder sem que uma exclua a outra. De um lado, por exemplo, podemos encontrar pessoas que vivem na superfície das informações e não necessariamente são ignorantes ou ingênuas. Do outro, temos pessoas bem informadas, que transformam informação em conhecimento e sabedoria com mais facilidade e que não necessariamente fazem bom uso disso. Ser bom em formar opiniões ruins pode ter algum valor a quem realmente quer isso, mas também pode representar uma drástica falha ética e moral.
Li o texto chamado 10 livros para idiotas, publicado aqui na Revista Bula, e vi um pouco dessa arrogância dos “bem informados”. Eu não sei se a ideia do autor era estimular algum debate sobre o consumo de conteúdo, mas a produção pareceu meramente um desabafo infantil e agressivo, sem realmente entrar na reflexão a respeito dos tipos de produção que estão sendo massivamente consumidos nos dias de hoje (nem é necessário escrever um texto erudito para fazê-lo).
O texto é composto por clichês que dão a entender que o publicitário Tadeu Braga, alguém aparentemente bem letrado, fica ofendido pelo fato de pessoas “comuns” terem acesso aos clássicos por razões “erradas” e/ou consumirem obras sem aparente relevância literária. Ele lamenta, por exemplo, o fato de o livro “Morro dos Ventos Uivantes” levar, na capa de uma nova edição, a informação de que esta é a obra preferida dos personagens Edward Cullen e Bella Swan, da saga “Crepúsculo”. A ação, obviamente mercadológica, foi realizada com a intenção de a obra ser lida pelos fãs da produção de Stephenie Meyer. Esse também é um jeito quase divertido de provocar uma parte da “elite intelectual”.
Sabe quando as pessoas ficam tristes por elas não serem mais as únicas em seu círculo a conhecer aquela banda underground? Quando sentem que ninguém usufruirá dela tão bem quanto você, principalmente se as pessoas vierem de realidades distintas? Parece ser exatamente isso.
Eis a cópia da lista publicada, em ordem de “gravidade”:
“10 — O Morro dos Ventos Uivantes (Emily Brontë)
9 — Inferno (Dan Brown)
8 — Assim Falou Zaratustra (Friedrich Nietzsche)
7 — A Hora da Estrela (Clarice Lispector)
6 — Saga Crepúsculo (Stephenie Meyer)
5 — O Retrato de Dorian Gray (Oscar Wilde)
4 — Justin Bieber: A Biografia
3 — Porta dos Fundos / Não faz Sentido: Por Trás da Câmera
2 — Kafka para Sobrecarregados (Allan Percy)
1 — Cinquenta Tons de Cinza (E.L. James)”
Debater produção e consumo de conteúdo nos dias de hoje é uma ação espetacular e que deve ser extremamente apoiada, mas não devemos recorrer necessariamente ao caminho mais fácil para fazê-lo — o da prepotência e arrogância. É bem fácil criticar a relevância social da biografia do Justin Bieber, estudar a possibilidade de Dan Brown ter plagiado uma obra ao produzir “O Código da Vinci” e entrar em um debate sobre o impacto dos livros de autoajuda, mas isso precisa fazer parte de um debate maduro, sem agressões.
Na verdade, ele ressaltou que idiotas são as pessoas que leem, e não os livros mencionados (ele explicou, posteriormente e em outro meio, que denominou idiota “certas atitudes direcionadas à leitura”. Não é o que parece). O medo dele aparentemente é a possibilidade de ser fuzilado por críticos literários cultos, e não a existência de sua própria arrogância frente aos reles mortais.
“Também é notado que não só os livros ruins conseguem leitores idiotas. Clássicos da literatura, alguns dos livros mais brilhantes já escritos, também carregam esse fardo. Nesta lista, elejo os 10 maiores livros para idiotas, que chamam de burro quem fala ‘indiota’, mas citam ‘Harry Potter’ como um dos melhores livros já escritos na história.”
Possível ignorância minha, não entendo muito bem em que momento as pessoas passam a ter o direito de chamar as outras de idiota. Não entendo como alguém que oferece um texto agressivo e sem qualquer embasamento ou dado concreto relevante se vê capaz de falar de indivíduos fazendo as piores interpretações possíveis de toda a informação que pode vir desses meios.
Fica a dúvida sobre a verdadeira razão pela qual o termo “idiota” foi utilizado. O autor pode ser pedante. Ou pode não ter ideia do que realmente significa “idiota”. Ou esse pode ter sido o reforço que ele deu ao texto para a publicação, já que, se excluíssemos este termo e mantivéssemos o conteúdo escrito sem acrescentar alguma reflexão com mais maturidade, teríamos um texto bem menos chamativo.
Esclarecimentos do autor
Tadeu publicou, em seu Facebook, alguns esclarecimentos sobre o texto.
“Minha resposta sobre o texto ‘10 livros para idiotas’ em pontos:
1 — O texto nem sempre condiz com o pensamento do autor e este pode molda-lo da maneira que bem entender;
2 — Moralismo é algo chato e covarde;
3 — O objetivo do texto era ser polêmico e não ser intelectual e nem convencer ninguém. Usei de algumas verdades, piadas e ironias para tal. Se eu quisesse ser intelectual, não escreveria uma lista;
4 — Em nenhum momento chamei de “idiota” nenhum clássico. Qualquer um que tenha lido o texto e raciocinado um pouco pode perceber isso;
5 — Não ataquei nenhum tipo de pessoa. Denominei “idiota” certas atitudes direcionadas à leitura. Se a carapuça serviu, não posso fazer nada;
6 — Não sou contra o incentivo à leitura, por isso, não citei idades. Acho lindo um jovem ler Clarice Lispector independente do motivo. Se começou a ler por causa de Malhação, ótimo, mas duvido uma criança de 15 anos ter maturidade pra ler um “A Paixão Segundo G.H.”;
7 — Felipe Neto (que parece ter se sentido ofendido), seu canal é muito legal e desejo mais sucesso a sua carreira, mas ficar boladinho por dizer que esse livro é explorar uma nova mídia pra ganhar mais dinheiro, é piada. Se você doar todo o lucro à África eu retiro tudo o que disse e compro cem exemplares. Sobre a Porta dos Fundos, gosto muito dos vídeos e de alguns comediantes, mas um livro que traz os roteiros com imagens e comentários não é Literatura e, pra mim, não deveria existir (opinião pessoal);
8 — Continuo achando o gênero “auto-ajuda” idiota, o que não quer dizer que as pessoas que as leem são idiotas;
9 — To com muita preguiça de escrever mais e esse tema já encheu o saco. Os moralistas que arranquem seus cabelos.
Agora mim vai ficá aki lendo meu Ulicis tomando um xá e fumando um caximbo. Xau!”
Não é necessário dizer que a única conclusão a que podemos chegar, com a postagem no Facebook e com o texto aqui publicado, é que Tadeu tem uma paixão por enumerar tópicos. No mais, notamos que, pela explicação dada posteriormente (supondo que a ideia não fosse chamar os leitores de idiotas, como ele disse depois), a mensagem que ele queria passar por meio do texto falhou drasticamente em ser recebida como esperado — culpa do comunicólogo ou dos leitores (talvez sejam idiotas…)?
A decisão de publicar o texto
Quis entender o lado da Revista Bula em publicar um texto que, em minha opinião, instigou o debate, mas não pela ideia trabalhada pelo autor, e sim pela postura que ele assumiu para tentar fazê-lo. Fui atrás do criador do projeto, Carlos Willian Leite, enquanto escrevia este texto para ser publicado no portal de comunicação e arte Pyrsona. Carlos respondeu prontamente e me convidou a divulgar o conteúdo primeiramente aqui, no olho do furacão.
Conversamos, entre outros assuntos, sobre a responsabilidade do veículo que publica determinado conteúdo, como o fato de o material ser polêmico influenciar na decisão de utilizá-lo e a postura dos responsáveis pelos perfis do projeto nas redes sociais digitais (porque responderam a duas leitoras em tom irônico quando elas criticaram o texto sobre a lista de livros). Como este texto, ao menos, não se dedicará ao debate sobre os limites de um projeto em busca de sua sobrevivência, destacarei apenas parte do que ele me disse sobre o funcionamento do conteúdo editorial e de como eles entendem que um texto é bem-sucedido. Isso dá, certamente, margem a outras reflexões.
— Como o fato da aparente repercussão que um texto pode ter influencia na decisão de publicá-lo?
Tem muita influência. Vivemos de audiência. Temos 1 milhão de acessos por mês. Para manter essa estrutura precisamos de anúncios. E anúncios só vêm com audiência. Mas dependerá, sobretudo, de não fugir da proposta da Revista.
— Qual é a responsabilidade da revista sobre o conteúdo colaborativo publicado?
A Revista é solidária na publicação. Ou seja: é responsável tanto quanto o autor. Inclusive juridicamente. No entanto, o fato de publicar um texto não significa necessariamente concordância com ele. Significa que, mesmo quando discordamos, não deixamos de publicar. Exceto nos casos de violação da lei.
— Que fatores dão a entender que uma publicação foi bem-sucedida?
Publicação bem-sucedida é aquela que gera debate.
— Por que razão a publicação “10 livros para idiotas” poderia ser considerada bem-sucedida?
Como disse anteriormente, vivemos de audiência. Agências de publicidade não querem ver quem são seus colaboradores. Querem ver seu Google Analytics.
Levando em conta essas informações e o fato de o texto ter sido visualizado mais de 200 mil vezes, acredito que a equipe da revista considera, sim, a publicação bem-sucedida.
Enfim
É curioso ler comentários dos leitores, que concordam ou discordam do autor, da postura, dos livros. Há interpretações variadas, algumas mais coerentes e outras mais ofensivas (tanto quanto no texto de Tadeu, um pode excluir o outro). Dá para perceber ataques extremos de ambos os lados, entre os que defendem o não julgamento de um livro sequer e os que defendem a livre expressão de opiniões, independentemente do temperamento do autor.
Separei um comentário bem resumido, de Iolanda Raquel, que corresponde plenamente a um de meus questionamentos: “Se todos os livros que você leu só te ajudaram na hora de dizer o que é idiota e o que não é, eu acho que tá na hora de refletir sua vida, hein?”
Explico: É razoavelmente estranho, por exemplo, ver o perfil de Tadeu no Facebook repleto de fotos de livros de escritores clássicos e notar a ausência de uma argumentação minimamente aceitável na publicação dele, restando-nos ler um texto que explicita mais a prepotência e o preconceito do autor do que uma boa razão para algo ou alguém ser considerado idiota. É triste ver pessoas com aparente potencial para fomentar ótimos debates (ele acabou conseguindo isso, mas por outra razão) sendo tão infantis, e é lamentável ver a humildade ser tão esquecida.
Publicaram, no Literatortura, uma boa resposta para este texto. De qualquer modo, vi que, mesmo não sendo crítico literário, poderia ser útil tentar dar a minha contribuição com um texto a respeito do comportamento humano.
Para encerrar o texto, recorrerei ao comentário que minha mãe fez à época da publicação de “10 livros para idiotas”: “William Blake disse ‘As a man is, so he sees’. Cada um tira da leitura de um livro aquilo que seu nível de compreensão atual permite, por isso reler um bom livro tempos depois nos faz enxergar coisas novas. Prefiro pensar que ainda que atraídos a alguns destes bons livros por motivos ‘idiotas’, cada leitor terminou a leitura com algum acréscimo, e pode se sentir tentado a ler mais. Quanto ao autor do post original: driblar o orgulho intelectual é o grande teste de um homem letrado.”