Como de fato há muito mais mistérios entre o céu e a Terra do que é capaz de supor nossa vã filosofia, não existe nada que tire a plausibilidade de uma história como a que se vê em “O Sacrifício do Cervo Sagrado”, um híbrido de conto moralizante com alucinação giallo à Dario Argento sobre um homem que precisa se convencer de sua pedestre humanidade e um garoto metido sabe-se lá com que demônios. Yorgos Lanthimos foi se especializando nessas tramas excêntricas, cheias de personagens ambíguos, e aqui, recria, com Efthimis Filippou, seu corroteirista no precedente “O Lagosta” (2015) e nos ulteriores “Pobres Criaturas” (2023) e “Tipos de Gentileza” (2024), a tragédia grega que ilumina o título.
A vida de Steven Murphy parece perfeita. O mais renomado cardiocirurgião de Cincinnati, Ohio, no nordeste dos Estados Unidos, é casado com Anna, uma oftalmologista que parece não exercer mais a profissão, e os dois são pais de Kim, de quinze anos, e Bob, de dez, e os quatro moram num palacete no bairro mais nobre da cidade. Aos poucos, Lanthimos e Filippou explicam a onipresença de Martin, um garoto que fala quase aos sussurros, esgueira-se pelos cantos e vai dando corpo a uma obsessão por Steven. Há pouco tempo, o pai de Martin acabou morrendo na mesa de cirurgia enquanto Steven o operava, e o médico agora sente-se responsável por dar-lhe alguma migalha de atenção, inclusive presenteando-o com relógios caros e o convidando a frequentar sua casa. Essa introdução tumultuada, nebulosa, permanece até o fim, com barreiras mais ou menos intransponíveis, ainda que seja sempre óbvio o estranhamento dessa relação.
A rotina aristocrática dos Murphy segue inabalável, até que Bob demora-se um pouco mais na cama, obrigando o pai a ir chamá-lo. O garoto está prostrado, com o olhar perdido, e diz que não sente as pernas. Steven, claro, pensa que se trata de uma desculpa para não ir à escola, mas os dois acabam no hospital, onde vão se desenrolar alguns dos momentos mais perturbadores do longa, inclusive o que revela não ser uma coincidência a aproximação de Martin e Bob e a enfermidade inexplicável a atormentar a criança. Nesse embalo, Lanthimos menciona a redação que um dos personagens escrevera sobre Agamenon, o comandante supremo dos gregos durante a Guerra de Troia, que matara um dos cervos favoritos de Ártemis, e para escapar da maldição da deusa da caça, fora obrigado a oferecer sua filha Ifigênia em sacrifício. Passados três mil anos, Steven prova de igual veneno e deve enfrentar o mesmo destino, obrigado a deixar que Bob feneça para que os outros tenham uma chance.
Há pelo menos nove anos, Lanthimos desfruta do cômodo e merecido privilégio de reunir a sua volta o elenco mais adequado para cada filme — instigando ciumeiras e rancores entre os preteridos. Nessa trama sobre Deus, diabo e ciência, Colin Farrell e Barry Keoghan disputam um duro páreo, cada evocando uma face distinta do trabalho do diretor. Num papel dependente do boa performance de Farrell, Nicole Kidman sai-se melhor que a encomenda, e Alicia Silverstone, como a mãe de Martin, surpreende depois de um hiato na tela grande, na participação afetiva e dedicada que dá um pouco mais de substância dramática ao personagem de Keoghan. “O Sacrifício do Cervo Sagrado” é bizarro, triste, confuso, mas lindo, mérito também da fotografia de Thimios Bakatakis. Vida longa a Yorgos Lanthimos e suas doidices maravilhosas!
Filme: O Sacrifício do Cervo Sagrado
Direção: Yorgos Lanthimos
Ano: 2017
Gêneros: Drama/Suspense/Terror psicológico
Nota: 10