A síndrome de vira-lata do brasileiro muitas vezes o impede de admitir que existe uma camada de pobreza nos países abastados. Ou ele imagina que a pobreza de lá é muito mais bonita do que a pobreza daqui. Como se a nossa miséria só não fosse mais miserável do que a miséria africana, onde não existe riqueza ou de onde a riqueza foi levada para o endereço dos exploradores.
Os autores nórdicos parecem empenhados em mudar um pouco essa visão de mundo deturpada. Seja na “Fazenda Africana”, de Klaren Blixen, que também escreveu “A Festa de Babette”, seja nos relatos de Tove Ditlevsen na “Trilogia de Copenhagen”, que chega para romper a casca da hegemonia do prolixo Karl Ove Knausgard, da interminável série “A Morte do Pai”.
Uma característica comum entre eles é a predileção pela autoficção, como passaram a ser conhecidos os livros de memórias, que guardam uma distância conveniente das biografias, que seguem um conjunto de regras estabelecidas. As memórias, afinal, estão sujeitas à invenção do narrador e fica combinado que ninguém liga muito para isso.
No caso de Ditlevsen, não seria descabido falar em romance de formação, uma vez que sua existência é esmiuçada desde os tempos de criança, incluindo as influências artísticas que ela colecionou ao longo do crescimento. Pode ser um romance de deformação, dependendo do ponto de vista.
A “Trilogia de Copenhagen” é dividida em Infância, Juventude e (no lugar da fase adulta) Dependência, que tem uma conotação direta, física e epidérmica, com um subtexto emocional poderoso. A sorridente Ditlevsen que aparece na capa atravessa relações sentimentais complicadas, como espelhos colocados frente a frente em uma sala fechada.
Da mãe temperamental e distante ao pai indolente, revolucionário de almanaque que perde o emprego com frequência, a infância é rastreada na dificuldade dos cubículos afastados e das amizades fugidias. Como ela, o irmão Edvin proclama o sonho de escafeder-se da família na primeira oportunidade oferecida pela maioridade. Ter 18 anos é poder sair de casa para trabalhar duro e morar sozinho.
Os estudos são interrompidos pela necessidade da sobrevivência, caracterizada por atividades improvisadas e de baixa renda. A juventude começa com a insegurança guiada pelo desgosto com a beleza ausente no próprio corpo. A fuga na poesia não sugere nenhum caminho que não seja a personificação da vontade de escrever. Um fim em si mesmo, sem nenhuma consequência.
Até que o primeiro casamento a coloca na carreira literária. Os livros lançados são entremeados por novos casamentos rompidos e novas paixões fracassadas, enquanto os alemães tomam conta da Europa na Segunda Guerra. Um aborto realizado quando ela já tem uma filha para criar gera a dependência de uma substância química injetável, um anestésico de efeito fulminante que vai deixá-la à beira da morte, na companhia de outros comprimidos.
Uma internação, como um recurso desesperado, depois de muito sofrimento, desenrola o tapete da abstinência. A sobriedade é colocada em risco pelo desejo de mais uma dose. As recaídas são mergulhos em paraísos artificiais. Tudo é contado com honestidade por Ditlevsen, em uma prosa franca e direta, sem adornos. A possibilidade de suavizar a ruína com uma iluminação decadente é recusada de imediato.
Ela, por assim dizer, não doura a pílula. Não facilita a vida dos seus pais, expõe as fraquezas de seus maridos, notadamente a instabilidade do médico que controla seu acesso aos medicamentos, os tropeços dos amigos, mas principalmente seus medos, suas dores e alegrias, seus escorregões e suas trombadas. Assim como enaltece o efeito terapêutico da escrita, ao exorcizar o que lhe parece a angústia nos porões.
O final relativamente feliz, um recomeço com uma estrutura elementar montada em uma base mais sólida, é marcado pela confissão da eterna vigilância contra o vício. Se tivesse nascido no Brasil, a trajetória de Ditlevsen daria um romance. Certamente, com mais elementos policiais e uma presença menos efetiva da saúde pública.