Você certamente não assistiu, mas deveria: remake da Netflix da obra-prima de Hitchcock, ganhadora do Oscar

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Publicado em agosto de 1938, “Rebecca — A Mulher Inesquecível” rapidamente se tornou um sucesso literário. A história envolvente criada por Daphne Du Maurier, sobre uma jovem recém-casada que é assombrada pela memória da falecida esposa de seu marido, já indicava seu potencial para conquistar outros formatos. Naturalmente, a trama carregada de mistério e tensão psicológica parecia predestinada a ganhar uma nova dimensão no cinema, atraindo o fascínio do público com a força ampliada que as grandes telas e suas estrelas exercem.

Esse pressentimento se concretizou quando, em 1940, Alfred Hitchcock, o mestre do suspense, trouxe “Rebecca” para o cinema. O elenco, composto por Joan Fontaine, Laurence Olivier e Judith Anderson, deu vida a um triângulo de personagens cuja complexidade emocional é o motor da narrativa. O filme rapidamente se tornou um marco, comprovando a capacidade de Hitchcock de transformar a atmosfera inquietante do romance em uma obra visual igualmente poderosa. O sucesso da adaptação foi um reflexo direto da forma como o diretor soube explorar a psicologia dos personagens e o ambiente opressor de Manderley, a mansão que parece possuir vida própria.

Curiosamente, no mesmo ano de lançamento do livro, outro gênio criativo, Orson Welles, já havia adaptado “Rebecca” para o rádio. A produção foi encenada com o elenco do Mercury Theatre, grupo que Welles fundou em 1937. Com essas duas mentes brilhantes associadas à obra, Ben Wheatley, ao aceitar o desafio de dirigir uma nova adaptação de “Rebecca” em 2020, se deparou com um verdadeiro teste de fogo. Ainda assim, conseguiu prestar sua homenagem ao legado tanto de Du Maurier quanto dos diretores que o precederam.

Os roteiristas Anna Waterhouse, Jane Goldman e Joe Shrapnel mantiveram-se fiéis ao material original de Du Maurier, enfatizando os aspectos labirínticos da narrativa, que se revelam nas intrincadas dinâmicas entre os personagens. A famosa frase que abre o romance, que sugere um caráter sobrenatural para Manderley, é preservada com grande cuidado. Wheatley inicia a história deslocando a ação para Monte Carlo, onde a protagonista, uma jovem da classe trabalhadora, sofre sob o jugo de sua patroa.

Embora o filme mantenha o foco na história de amor e mistério, há uma inserção sutil de comentários sociais sobre as dificuldades econômicas da Europa nos anos 1930, que acabaram por se perder em meio à narrativa. A senhora Van Hopper, interpretada por Ann Dowd, serve como uma metáfora para a indiferença da elite em relação à instabilidade política e econômica da época, enquanto o mundo ainda respirava os resquícios da Grande Depressão e se aproximava da Segunda Guerra Mundial.

Em contraste com o caos que se desenrolava no mundo real, os personagens de “Rebecca” vivem em um universo de excessos, com festas regadas a champanhe e salões adornados pela fotografia exuberante de Laurie Rose. A trilha sonora de Clint Mansell, no entanto, peca ao suavizar o tom sombrio da narrativa no momento em que deveria intensificar a melancolia crescente.

Dentro desse cenário opulento, Maxim de Winter, interpretado por Armie Hammer, surge como um aristocrata assombrado pelo passado. O peso da memória de sua falecida esposa, Rebecca, é uma presença constante, como um fantasma invisível que continua a ditar o rumo dos acontecimentos. Ele tenta se libertar desse fardo ao se casar com a nova senhora De Winter, interpretada por Lily James, mas a transição não se dá sem resistência.

A jovem esposa, embora inocente e insegura, começa a descobrir aos poucos os segredos sombrios que permeiam Manderley. Lily James oferece uma interpretação interessante, distanciando-se da ingenuidade completa que define a personagem no romance original, e trazendo uma perspectiva mais complexa e ousada. Ainda assim, há uma ambiguidade em sua performance que gera interpretações variadas sobre a real natureza de sua personagem, algo que Fontaine, no papel original, tinha delineado com maior clareza.

Kristin Scott Thomas, por sua vez, brilha no papel da sombria governanta, senhora Danvers. Sua performance captura a essência da personagem com precisão, entregando uma mulher cujo apego à falecida Rebecca ultrapassa os limites do que é compreensível. A forma como ela habita o vazio deixado pela antiga senhora da casa sugere camadas mais profundas de obsessão, levantando suspeitas sobre a verdadeira natureza de sua devoção.

A tensão sexual latente entre os personagens principais — especialmente entre Maxim e sua nova esposa, mas também entre a governanta e o fantasma de Rebecca — permanece como o ponto central da narrativa. A nova adaptação de “Rebecca” mantém essa carga emocional, criando momentos de angústia e desespero que são potencializados por cenas oníricas, nas quais a jovem esposa é atormentada por visões perturbadoras. Trepadeiras emergem do chão de Manderley e pessoas sussurram o nome de Rebecca, num crescendo de paranoia.

Em suma, “Rebecca — A Mulher Inesquecível”, agora disponível na Netflix, honra seu legado como um clássico gótico. Apesar de algumas atualizações estilísticas, o filme preserva a essência da obra original, oferecendo uma narrativa envolvente que continua a fascinar gerações.


Filme: Rebecca — A Mulher Inesquecível
Direção: Ben Wheatley
Ano: 2021
Gêneros: Romance/Drama
Nota: 8/10