Superprodução épica que custou 438 milhões de reais e foi vista por menos de 30% dos assinantes da Netflix David Eustace / Netflix

Superprodução épica que custou 438 milhões de reais e foi vista por menos de 30% dos assinantes da Netflix

David Mackenzie entrega uma produção de alto nível em “Legítimo Rei”, um filme que abriu o Festival Internacional de Cinema de Toronto de 2018, e que impressiona tanto pela grandiosidade técnica quanto pela profundidade narrativa. Os planos aéreos capturados por drones oferecem uma visão imersiva das vastas paisagens escocesas, enquanto o figurino minuciosamente reproduzido transporta o público diretamente para o século 14.

As batalhas, coreografadas com precisão quase cirúrgica, ressaltam a habilidade de Mackenzie em criar cenas de ação com impacto visual e emocional. É nesse contexto que o diretor constrói uma narrativa rica e provocativa, explorando temas universais como ambição, colapso moral, e o doloroso processo de amadurecimento de uma nação.

O filme aborda a trajetória de Roberto I, o célebre rei da Escócia que liderou a resistência contra a dominação inglesa. Chris Pine assume o papel de Robert The Bruce com vigor, encarnando o ideal de um líder paternalista e comprometido com o bem-estar de seu povo, características que ecoam, de certa forma, os líderes populistas modernos.

A Escócia retratada por Mackenzie é um território de complexidades geopolíticas difíceis de entender até mesmo para seus próprios habitantes. O filme mostra como a luta de Robert pelo poder desencadeia uma série de eventos que deixam o país em um estado de incerteza e instabilidade, o que, paradoxalmente, pavimenta o caminho para sua eventual emancipação.

Um dos pontos mais intrigantes do filme é a maneira como Mackenzie explora a dualidade de seus personagens. Robert The Bruce, interpretado por Pine, e Edward I, o príncipe de Gales vivido por Billy Howle, travam uma batalha que vai além da disputa territorial.

O roteiro, coescrito por Mackenzie e outros quatro roteiristas, constrói uma narrativa em que os papéis de herói e vilão se alternam constantemente, refletindo a complexidade da vida real, onde ninguém é totalmente bom ou mau. Essa abordagem confere ao filme uma camada adicional de sofisticação, com personagens que, em diferentes momentos, assumem ambas as posições, tornando a trama ainda mais envolvente.

Com sua habilidade inata de transformar episódios históricos aparentemente triviais em momentos épicos, Mackenzie cria uma atmosfera de tensão crescente que culmina em sequências cinematográficas arrebatadoras.

Um exemplo disso é o uso de um plano-sequência meticulosamente executado, que captura a essência autoritária e, por vezes, misógina do protagonista. A cena não apenas enriquece a narrativa, mas também oferece ao público um vislumbre das complexidades psicológicas de Robert The Bruce, um homem dividido entre o dever para com seu povo e suas próprias ambições pessoais.

Ao longo do filme, a tensão entre Escócia e Inglaterra permanece como um elemento constante, refletindo as desavenças históricas que moldaram a relação entre os dois países. Mackenzie, como um diretor escocês, infunde em “Legítimo Rei” um senso de orgulho nacional, destacando a resiliência de seu povo diante de um império poderoso e opressor. Nesse sentido, o filme se conecta com outras produções que exploram o mesmo tema, como “O Rei” (2019), de David Michôd, que também retrata as dinâmicas de poder entre monarcas e impérios.

A luta de Robert The Bruce contra as forças inglesas ecoa um tema antigo e recorrente na história: o embate entre o pequeno e o grande, o fraco e o forte. Desde a Bíblia, com a história de Davi e Golias, até os tempos modernos, essa narrativa tem sido usada para inspirar e provocar reflexão.

No entanto, Mackenzie vai além de uma simples história de luta pela liberdade. Ele examina as implicações dessa guerra prolongada, tanto para a alta aristocracia quanto para os vassalos mais humildes. O resultado é um retrato honesto e, por vezes, brutal de uma nação em ebulição.

O filme também lança luz sobre a vida pessoal de Robert The Bruce, destacando o sequestro de sua esposa, Elizabeth de Burgh, pelas forças inglesas. Embora breve, a performance de Florence Pugh como Elizabeth é tocante e oferece uma perspectiva mais íntima sobre o impacto da guerra na vida do rei.

A dor e o sofrimento de Robert ao ver sua esposa nas mãos do inimigo reforçam o dilema enfrentado por muitos líderes ao longo da história: o sacrifício de suas vidas pessoais em prol de uma causa maior. Governar, como mostra o filme, é um fardo que exige grandes renúncias.

Mesmo com todos os avanços sociais e políticos, “Legítimo Rei” sugere que algumas questões fundamentais permanecem inalteradas. Embora a Escócia tenha conquistado uma forma de independência, a figura de um monarca ainda paira sobre o país, com o rei Charles III atualmente ocupando o trono. A ironia desse fato não passa despercebida, lembrando o público de que, por mais que o mundo mude, algumas estruturas de poder permanecem intactas, como se a própria história estivesse destinada a se repetir.

Giuseppe Tomasi di Lampedusa, autor de “O Leopardo”, escreveu que “tudo deve mudar para que tudo continue igual”. Essa citação parece ecoar no subtexto de “Legítimo Rei”, sugerindo que, apesar de todas as revoluções e mudanças de regime, as dinastias e os impérios continuam a exercer seu poder, de maneiras mais sutis, mas igualmente eficazes. O filme de Mackenzie, assim, não é apenas uma recontagem de eventos históricos, mas também uma reflexão sobre a própria natureza do poder e da liderança, temas que continuam a ressoar em pleno século 21.


Filme: Legítimo Rei
Direção: David Mackenzie
Ano: 2018
Gênero: Drama/Ação
Nota: 9/10