O futuro foi ontem. Aquela sensação de fim de linha. Aquele cheiro de solidão compulsória a queimar desmedida. A névoa densa, quase táctil, descortinando sobre a cidade o seu manto tóxico. Onde estavam os prédios que espetavam o terreno como um presunto? Não enxergava mais os espigões. Presumi que fosse neblina, que fosse iminência de chuva. Eram lágrimas. A minha caveira de bacias macilentas transbordando de ardume pelos olhos. A estupefação. O meu coração triste. O sumiço repentino da passarinhada que dava canto e que dava vida ao pomar. De que vale um pé-de-fruta sem uma ave, sem uma abelha, sem um maribondo, sem um ser humano para catar o doce bom da vida? Agosto é um mês que não dá frutos. Dá doidos. Sorumbático, desfruto da paisagem árida e enfumaçada do planalto central como o urubu sonolento que espreita, pousado sobre a antena da casa. Todos os canais de TV anunciam que o país arde em chamas. Chamo urubu de meu louro, mas, o bicho não me dá a mínima. 38 graus de máxima, é o que informam. Só não meteram fogo no próprio rabo, os incendiários. As minhas retinas ardem no plural. Instilo sobre as pupilas gotas generosas de soro fisiológico. É lógico que o mau humor não se dissipa com tanta facilidade. Os meus pulmões miam. Bombinhas de aerossóis garantem-me uma dentre sete vidas. A paisagem feiosa parece prenúncio de morte. A abominável falta de ar se converte em falta de vontade, em falta de esperança, em desencanto que não dissipa com o vento. Não está ventando. O tempo está feio. O meu corpo está feio, por causa do tempo. Aguardo com ansiedade e lira a chegada da temporada de chuvas. Deus devia estalar os dedinhos consagrados, fazer chover, fazer brotar um pouco mais de juízo na cabeça fértil dos seus filhos. Deus devia. Deus devia. Deus não nos deve nada, ora e essa. Já chega de tanto assédio contra a divindade. Um sol alaranjado, dantesco, coisa de filme, insinua-se por trás do paredão de fuligem. Merecia uma foto esse sol. Merecia uma foto. Em meio a tamanha sofreguidão, os ipês colorem a rua com nódias de encantamento. Há um milagre em cada flor. Nem tudo está perdido, mas, não sei o caminho. Vago pela casa vestido de nada. Caso chova, vou me banhar na chuva. Nu como os animais. Eu sou um animal. Vou me reconciliar com a mãe natureza, chupar as suas tetas e me alimentar de vida. Vou rolar a minha dívida, lavar a égua, lavar as mágoas. Vou enxaguar esse coração que anda sujo. Há poeira a encobrir o meu corpo. Sei disso por causa do prurido. A pele grita: 7% de umidade relativa do ar. Faz clima de deserto dentro do peito. Há um esforço coletivo colossal para compreender o atual estado de miséria da humanidade. Estou vivo, mas, ainda não me encontrei. Sou o copo preenchido de água até a metade. Não sei se estou cheio. Não sei se estou vazio. Os meus neurônios faíscam como fios desencapados. Em tempos de estiagem, qualquer faísca será sempre um grave risco de combustão interna. O coração incendiado em meio a tanto alvoroço. Um jeito estúpido e antiquado de me deixar consumir pelo fogo, para ver brotar de novo a relva da esperança.
O futuro foi ontem
Eberth Vêncio
Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a Revista Bula há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente Bipolar, uma antologia de contos e crônicas.