Obra-prima de Yorgos Lanthimos, vencedora de 4 Oscars em 2024, é o melhor filme do ano até agora Divulgação / Film4

Obra-prima de Yorgos Lanthimos, vencedora de 4 Oscars em 2024, é o melhor filme do ano até agora

Yorgos Lanthimos parece ter assumido com entusiasmo a aura de cineasta transgressor, mesmo que suas produções atraíam grandes públicos, colecionem prêmios e permaneçam gravadas na mente do espectador muito depois que os holofotes se apagam. A mesma fórmula se repete em “Pobres Criaturas”, um filme que exacerba deliberadamente os desconfortos da existência humana, encarnados em uma das figuras que dão nome à obra. Nele, o diretor deposita suas frustrações, medos e desejos mais profundos, ao mesmo tempo em que reflete sobre a necessidade de explorar um universo desconhecido, mas que pareceu sempre estar à espera dessa revelação.

O roteiro, assinado por Tony McNamara, é uma adaptação livre do romance de ficção científica escrito pelo britânico Alasdair Gray (1934-2019) em 1992. Ele nos apresenta uma espécie de “Frankenstein de saia”, um corpo que, à primeira vista, aparenta ser desprovido de alma, mas que progressivamente vai tomando consciência de sua capacidade de fazer escolhas. E mais do que isso, de transformar essas escolhas em experiências inéditas e prazerosas, pavimentando assim seu caminho rumo a uma transformação que, até então, parecia inalcançável.

Lanthimos desfia as intricadas camadas do texto de Gray e McNamara com uma fluidez impressionante, e de repente, sem que o espectador perceba, o “monstro” torna-se aquilo que sempre foi: uma mulher confiante, autossuficiente, que rompe com o destino tirânico que lhe foi imposto.

Na Londres vitoriana, uma mulher grávida atira-se da icônica Torre de Londres, sendo retirada das águas já sem vida. Seu salvador frustrado, o cirurgião Godwin Baxter, é um homem de aparência repulsiva, com o rosto coberto de cicatrizes cuja origem o filme sugere à medida que a narrativa se desenvolve. Baxter habita uma mansão extravagante em Trafalgar Square e, quando não está ensinando anatomia na universidade, dedica-se a um peculiar passatempo: criar novas formas de vida ao cruzar diferentes espécies. Essas criações, dignas de um paraíso gótico, se espalham por sua casa de maneira caótica e fascinante.

É impossível ignorar a metáfora que emerge com a figura de God, sempre chamado apenas pela primeira sílaba de seu nome — um jogo de palavras que perde muito do impacto na tradução para o português. Em seu papel de “criador”, Baxter brinca de Deus, transplantando o cérebro do bebê, que sobreviveu, para o corpo da mãe já falecida. Assim nasce Bella Baxter, uma mente infantil presa ao corpo de uma mulher adulta, cujas formas femininas, por vezes exibidas de maneira desconcertante, são um reflexo de sua complexa condição. As alusões ao monstro de Mary Shelley (1797-1851) são inevitáveis, e o filme evoca o clássico de Frankenstein, um ícone da literatura que explora a vulnerabilidade da condição humana. Contudo, a clara associação de God com o Prometeu de Shelley, e não com Bella, revela um preconceito que se confirma no decorrer da trama, apesar da sofisticação que Dafoe imprime ao seu personagem.

Baxter é retratado como um gênio excêntrico, culto e, de certa forma, gentil, ainda que sua obsessão pela perfeição o leve a resultados desastrosos, como no caso do “nascimento” de Bella. A relação entre eles, no entanto, está longe de ser romântica, remetendo mais a um vínculo paternal. Esse tema encontra ecos na história de “A Bela e a Fera” (1740), onde a beleza e a monstruosidade são intrinsecamente conectadas. No entanto, no caso de Baxter, ele vê Bella como uma filha e não como um objeto de desejo.

Max McCandles, assistente de God e interpretado por Ramy Youssef, entra em cena para trabalhar em sua tese sobre transgenia, mas acaba desenvolvendo uma paixão por Bella. God percebe esse envolvimento de imediato, e em uma fala breve e afiada, Dafoe sintetiza a natureza de seu personagem: um homem que, apesar de nunca ter experimentado o amor carnal, “conhece o amor empiricamente, por observação”. Ele aceita a inevitável substituição de sua presença pelos sentimentos de McCandles, pois sabe que o jovem compartilha dos mesmos anseios que Bella. No entanto, ambos não previam a aparição de Duncan Wedderburn, o novo interesse de Bella, que decide fugir com ele, mais uma vez com a aprovação relutante de Baxter.

Emma Stone entrega uma performance marcante como Bella, especialmente na segunda metade do filme, quando a personagem reconhece seu poder e começa a explorar os desejos e prazeres que a vida tem a oferecer. A figura de Bella emerge como uma mulher que se deleita com sua recém-descoberta sensualidade, em cenas que muitas vezes flertam com o limite do desconforto. Em um momento particularmente polêmico, Bella termina em um bordel parisiense após a falência de Wedderburn, um evento tratado com o habitual toque de ironia de Lanthimos. Mas é em Lisboa que Bella tem seu verdadeiro renascimento, em meio a uma deslumbrante sequência visual embalada pela voz da fadista Carminho.

Na capital portuguesa, Bella finalmente se encontra, consciente de que é dona de suas vontades e de seu destino. Não mais uma cobaia nas mãos de God, ela assume o controle total de sua vida. O clímax do filme revela Bella em sua forma mais plena, cercada por homens que se submetem a seus desejos, enquanto ela, com a mente livre, almeja conquistas ainda maiores.


Filme: Pobres Criaturas
Direção: 2023
Ano: Yorgos Lanthimos 
Gêneros: Comédia/Drama/Ficção científica/Romance 
Nota: 9/10