Se há um filme obrigatório na Netflix, é a obra-prima de Charlotte Wells: tocante, encantadora e capaz de emocionar profundamente Divulgação / Charades

Se há um filme obrigatório na Netflix, é a obra-prima de Charlotte Wells: tocante, encantadora e capaz de emocionar profundamente

O longa “Aftersun”, responsável pela primeira indicação de Paul Mescal ao Oscar de Melhor Ator, mergulha nas lembranças íntimas da diretora Charlotte Wells. O filme se desenrola a partir de uma perspectiva pessoal, narrando as últimas férias que Charlotte passou com seu pai em uma praia na Turquia. Na trama, o personagem de Mescal, Calum, retrata o pai da cineasta. Aos 31 anos, ele decide comemorar seu aniversário levando sua filha Sophie, de 11 anos, para essa viagem. A distância física entre eles, causada pelo fato de Calum não viver mais com a família na Escócia, não impede a forte ligação emocional que eles mantêm, sendo evidente a influência do pai sobre os interesses artísticos da filha.

Ao longo do filme, Sophie utiliza uma câmera MiniDV, uma referência direta à que Charlotte recebeu de seu pai. A cineasta recria, através dessas gravações, momentos que ela mesma vivenciou durante sua adolescência, ao filmar seu pai e fazer perguntas para ele. Esse vínculo afetivo ressurge de maneira intensa em “Aftersun”, que está disponível na Netflix, evidenciando a profundidade das conexões emocionais de Charlotte com sua própria história. Embora Calum deseje aproveitar cada minuto ao lado da filha, há um mistério envolvendo sua condição emocional, algo que o distancia gradualmente, mesmo quando ele parece estar presente.

A narrativa do filme é fragmentada, refletindo a natureza de uma memória. As cenas se alternam entre momentos de diversão, como os dois na piscina ou em um passeio de barco, e trechos gravados pela câmera de Sophie. Esses instantes são marcados por atividades cotidianas, como a cantoria no karaokê, uma noite em uma boate ou a simbólica música “Under Pressure”, de David Bowie. Na letra que pergunta “por que não podemos nos dar mais uma chance?”, Calum se perde na escuridão, e esse desaparecimento metafórico evidencia o distanciamento que, aos poucos, se instala. Apesar de estar fisicamente ao lado de Sophie, sua mente parece estar sempre distante. Quando a filha o questiona sobre onde ele se imaginava estar aos 31 anos, o vídeo termina sem resposta, e esse silêncio é revelador de uma desconexão que se amplia com o tempo. Calum oculta de Sophie as dificuldades financeiras e emocionais que enfrenta, mas, ao mesmo tempo, sua omissão cria uma barreira invisível entre os dois.

Charlotte incorpora detalhes simbólicos ao filme, como o Tai Chi praticado por Calum, um reflexo de sua busca por equilíbrio interno. A história também acompanha as mudanças de Sophie, uma garota que atravessa a linha tênue entre a infância e a adolescência. Embora seja uma observadora atenta, ela sente que há algo errado com seu pai. No entanto, por mais que tente compreendê-lo, ele parece sempre fora de alcance, como se escapasse de suas tentativas de conexão.

Calum, um pai ainda muito jovem, muitas vezes é confundido com o irmão mais velho de Sophie. Sua juventude revela um homem que, claramente, não estava completamente preparado para as responsabilidades que a vida lhe impôs. Ele sonha com um futuro diferente, planeja mudar-se para um apartamento onde Sophie tenha seu próprio quarto e pretende abrir um negócio com um amigo. Contudo, essas ideias são tingidas por uma sensação de frustração subjacente, como se ele não estivesse satisfeito com o rumo de sua vida, sempre preso em planos que parecem distantes da realidade.

Agora, Charlotte Wells, ao atingir a mesma idade que seu pai tinha, revisita seus sentimentos com uma nova perspectiva. Ela passa a enxergar as pressões e incertezas de um jovem adulto que ainda está tentando encontrar seu caminho, equilibrando as responsabilidades da paternidade com a busca por uma identidade própria. Crianças tendem a acreditar que os pais têm todas as respostas, mas a realidade é que adultos também estão, muitas vezes, navegando no escuro, tomando decisões com base na intuição e torcendo pelo melhor.

Ao recriar esses momentos no cinema, Charlotte consegue se colocar no lugar do pai e compreender a angústia e a confusão que ele enfrentava na época. Na vida real, seu pai faleceu aos 39 anos, após uma longa luta contra a depressão. “Aftersun” é, portanto, um tributo doloroso e uma tentativa de entender quem era esse homem, além do papel que desempenhava como pai.


Filme: Aftersun
Direção: Charlotte Wells
Ano: 2022
Gênero: Drama
Nota: 10