Compreender a vida como ela é de fato, enxergar o mundo em seus detalhes mais cruelmente sutis, aceitar que tudo tem um propósito, por mais revoltante e mesmo bizarro que seja, vai se tornando imperativo, uma condição fundamental para se ter alguma chance de sobreviver em meio ao turbilhão de emoções que atropela cada um. É impossível saber o que acontecer para além dos dez centímetros de concreto que nos separam do restante da humanidade, à esquerda, à direita, acima e abaixo, ou por trás de inocentes cercas brancas e, em assim sendo, cada qual que se encarregue de tratar de sua própria vida, torcendo para que nunca surpreenda-nos o dia em que, no meio da noite, um cheiro de queimado não nos invada a janela depois que alguém chega exausto de um plantão e inventa de fritar um bife, alarmando toda a rua. Sharon Stevens Evans, a protagonista de “Uma Vida de Esperança”, parecia não ver empecilho algum em levar sua vida sem nenhum dilema existencial, sem nenhum incômodo com o sofrimento do outro, até que uma manchete de jornal a estarrece. Jon Gunn tira da história verídica de Sharon, empenhada em salvar de uma morte lenta e injusta uma menina de cinco anos, os elementos para um melodrama de peso, alicerçado na performance irretocável de uma atriz que só melhora com o tempo.
Depender da bondade de estranhos nunca é o melhor dos mundos. Quando essa é a única saída, entretanto, todo cuidado é pouco no que se refira a manter-se a salvo de inimigos cuja verdadeira essência fica cada vez mais obscura, como se as luzes faltassem, o ar se tornasse rarefeito de súbito e se entrasse num dédalo cujo chão se abrisse à medida que sentisse a força dos passos do infeliz ali encarcerado. Ter filhos é a maior aventura a que alguém pode se lançar, e por eles decerto se aprende logo que a fronteira do tolerável vai se alargando quase indefinidamente, até que outra vez comecem as pequenas chantagens, os berros estridentes, as tentativas frustradas de convencimento, para o banho, para a alface, a observação preocupada do que entra e, principalmente, do que sai da criança, prazeres de que mães e pais, nessa ordem, não abdicam e dizem ser o Céu na Terra. A Sharon Stevens poderia resvalar num monumental equívoco se não fosse por Hilary Swank, que extrai dessa cabeleireira espalhafatosa de Louisville, no Kentucky do começo dos anos 1990 as nuanças muito sutis que livram-na do rótulo de heroína. Até que se comova com a dor de Michelle Schmitt, que precisa de um transplante de fígado, Sharon dá suas cabeçadas com a bebida, até que ninguém a aguenta. O roteiro de Kelly Fremon Craig e Meg Tilly, experientes nessa narrativas, destaca, no tempo certo, que ela só faz isso porque quer salvar-se a si mesma — e talvez resgatar os laços com o filho, o que parece não conseguir. Swank deixa claro que “Uma Vida de Esperança” é muito mais sobre Sharon que sobre Michelle, e não há demérito algum nessa escolha. A intenção vale tanto ou mais que a causa.
Filme: Uma Vida de Esperança
Direção: Jon Gunn
Ano: 2024
Gêneros: Drama
Nota: 8/10