Suspense baseado em sucesso literário de Stephen King, com 50 milhões de leitores, filme está na Netflix Nicole Rivelli / Netflix

Suspense baseado em sucesso literário de Stephen King, com 50 milhões de leitores, filme está na Netflix

O filme “O Telefone do Sr. Harrigan” traz à tona uma visão única sobre a obra de Stephen King, ao explorar temas menos tradicionais dentro do vasto universo do autor. Dirigido por John Lee Hancock, a adaptação do conto homônimo — parte da coletânea “If It Bleeds” de 2020 — desafia as expectativas dos fãs mais ortodoxos ao priorizar a atmosfera e a tensão psicológica, em detrimento de sustos óbvios ou violência gráfica. A proposta narrativa segue a trajetória de Craig, um garoto que, após a morte da mãe, forma uma relação incomum com o recluso bilionário Harrigan, interpretado por Donald Sutherland.

O cenário da pequena cidade no Maine, ambiente já familiar para os seguidores da obra de King, funciona aqui como um palco para a solidão e o desconforto. Craig, inicialmente vivido por Colin O’Brien, lida com a perda enquanto seu pai, interpretado por Joe Tippett, parece apático e distante. No entanto, é Harrigan quem percebe em Craig uma chama de ambição, algo que ressoa com sua própria trajetória de sucesso financeiro. Esse vínculo entre os dois, ainda que não explicitamente emotivo, se desenvolve por meio de leituras que Craig faz para Harrigan, em troca de uma modesta remuneração, criando uma dinâmica que mescla aprendizado e isolamento.

A inserção de tecnologia — especialmente com a introdução do smartphone no enredo — acrescenta uma camada de reflexão sobre o impacto das inovações na vida de Harrigan, um homem que já viveu o bastante para ver o mundo mudar drasticamente. A resistência inicial do bilionário à ideia de usar um celular se dissolve quando ele percebe as possibilidades que o aparelho oferece, inclusive a capacidade de acompanhar os mercados financeiros em tempo real. Esse detalhe, aparentemente trivial, destaca como as novas gerações se integram às mais velhas, e como a tecnologia pode, paradoxalmente, conectar e isolar ao mesmo tempo.

Conforme os anos passam, com Craig agora interpretado por Jaeden Martell, o relacionamento entre ele e Harrigan se transforma, embora continue marcado por uma frieza calculada. Não há momentos de grande sentimentalismo ou cenas comoventes entre eles; ao contrário, o filme mantém uma distância emocional deliberada, refletindo a natureza pragmática de ambos. Essa escolha de Hancock pode afastar aqueles que esperam um drama mais óbvio ou envolvente, mas é justamente essa contenção que dá ao filme seu tom perturbador.

O elemento sobrenatural, embora sutil, começa a ganhar força após a morte de Harrigan, quando Craig, ainda abalado pela perda, continua a se comunicar com o velho amigo através de mensagens de texto enviadas para o celular que enterrara junto ao corpo. A sugestão de que Harrigan, mesmo morto, ainda pode exercer algum controle sobre a vida do jovem, transforma o filme em uma meditação sobre o poder do dinheiro, da influência e da memória. Esse aspecto da trama, que poderia facilmente ser explorado de forma sensacionalista, é tratado com uma certa elegância e economia visual, evitando o exagero e mantendo o suspense em níveis quase desconfortáveis.

Por outro lado, Hancock utiliza recursos visuais e narrativos que realçam a solidão de Craig e sua crescente desilusão com o mundo ao seu redor. A cidade pequena do Maine, com sua igreja quase vazia e seus habitantes distantes, serve de metáfora para o isolamento emocional que o garoto experimenta, mesmo quando está em companhia de outras pessoas. A falta de figuras maternas ou de figuras paternas ativas em sua vida torna Craig vulnerável à influência de Harrigan, cujas ações, mesmo após a morte, continuam a moldar as decisões do jovem.

Se comparado a outras adaptações de King, como “1922” de Zak Hilditch, “O Telefone do Sr. Harrigan” se destaca pela sua peculiaridade. Não é um filme que oferece respostas fáceis ou conclusões satisfatórias; ao contrário, ele deixa muito em aberto, permitindo que o público reflita sobre as complexidades das relações humanas, o impacto da tecnologia e o que significa, de fato, estar conectado com alguém. Os fãs mais tradicionais de King podem se surpreender com o ritmo mais lento e introspectivo do filme, mas Hancock captura com precisão a essência do conto original, ao mergulhar profundamente nos temas de solidão, arrependimento e a busca por significado em um mundo cada vez mais fragmentado.

Em última análise, o filme de Hancock é uma exploração psicológica sofisticada e contida, que evita cair nas armadilhas dos clichês do terror. A relação entre Craig e Harrigan, com todas as suas nuances e ambiguidades, torna-se o centro da narrativa, enquanto o sobrenatural funciona mais como um pano de fundo do que como a força motriz da história. Esse equilíbrio delicado entre o real e o fantástico é o que torna “O Telefone do Sr. Harrigan” uma obra singular dentro do gênero e uma adaptação digna da obra de King, oferecendo ao público mais do que apenas sustos baratos: uma reflexão genuína sobre a natureza humana e os laços que nos conectam, mesmo além da morte.


Filme: O Telefone do Sr. Harrigan
Direção: John Lee Hancock
Ano: 2022
Gêneros: Drama/Terror
Nota: 8/10