Um homem é forçado a peregrinar por repartições públicas implorando para ser atendido numa questão banal. Sim, o argumento central de “Eu, Daniel Blake” é Kafka na veia, tão dramático e um tanto menos casmurro que “O Processo” (1925), publicado postumamente, à revelia do último desejo do tcheco, morto um mês antes de completar 41 anos, em 1924. Despretensioso, o filme de Ken Loach, vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes de 2016, mergulha na vida solitária, pobre, sórdida, brutal e curta — para repetir Thomas Hobbes (1588-1579), outro grande pensador da modernidade, em seu “Leviatã” (1651) — do personagem-título, um carpinteiro de 59 anos (esse número mostra-se fundamental para que se compreendam alguns aspectos da história) que não consegue mais trabalhar depois de um infarto. O roteiro de Paul Laverty balança de um patente descrédito de tudo para os inesperados alívios cômicos que aproximam o protagonista do espectador, e então qualquer um é capaz de sentir sua agonia, o grande trunfo loachiano.
Ninguém está a salvo de passar pelas mesmas agruras de Daniel, principalmente se é um homem que, raspando na velhice, flagra-se diante da necessidade de humilhar-se para usufruir de um direito numa das piores horas de sua exaustiva jornada. O Estado está sempre querendo nos passar a perna, em Pindorama ou em Newcastle, no extremo norte inglês, e não adianta reclamar, indignar-se e nem discutir.Egresso do stand-up, Dave Johns se sai muito bem para seu primeiro longa, deixando que aflore a cativante simplicidade de Daniel, visivelmente perdido quando tem de comparecer a entrevistas na Previdência e se entender com formulários, tudo para requerer a licença remunerada que irá lhe permitir comer e pagar o aluguel. Sensível, Loach inclui nessas sequências os embates de Daniel com a tecnologia, o que o obriga a frequentar o posto do serviço social com assiduidade exasperante. Quando dá sorte, é atendido por Ann, a empática servidora vivida por Kate Rutter, e numa dessas, conhece Katie, uma mãe solo de dois filhos pequenos, recém-chegada a Newcastle por não ter podido arcar com o custo de vida em Londres.
O encontro dos dois simboliza um renascimento, a chance de transformação individual de cada um, para que depois vislumbrem a tão sonhada inclusão, que nunca acontece. Daniel e Katie, uma ex-universitária que abandona os estudos por falta de dinheiro e agora sai de porta em porta oferecendo seus serviços de faxineira, deixando de comer para que sobre mais para as crianças, tornam-se grandes amigos, sem nenhuma aspiração romântica de parte a parte, e nem há espaço para tal. Ainda que Daniel se afeiçoe sinceramente àquela família inconvencional e única, trocando maçanetas e consertando fusíveis naquele apartamento caindo aos pedaços, e Katie e os filhos também encarem-no como uma possibilidade de conexão com sentimentos que julgavam mortos, os dois têm cada qual suas batalhas, que devem travar sozinhos. A certa altura, no lance mais indigesto do enredo, quando vão a um banco de alimentos do governo, Katie abre uma lata de extrato de tomate e o despeja nas mãos, na frente de todos, como se não pudesse desperdiçar nenhuma oportunidade de forrar o estômago. Daniel junta esse e os tantos outros momentos de angústia, sua e dela, e, homem bondoso demais para ser lobo de outros homens, acaba por sucumbir. E libertar-se, afinal.
Filme: Eu, Daniel Blake
Direção: Ken Loach
Ano: 2016
Gêneros: Drama
Nota: 9/10