Hideo Kojima ganhou popularidade pelos detalhes impressionantes e, às vezes, engraçados em sua mais famosa produção, “Metal Gear Solid”. Essa série já era uma obra-prima narrativa, além de ter se tornado o padrão-ouro do gênero stealth. Isso foi quando ele ainda trabalhava para a Konami, até 2015.
Em 2019, ele lançou “Death Stranding” pelo seu estúdio independente, Kojima Productions. E, mesmo já tendo demonstrado grande talento narrativo, inserindo complexidade em seus jogos — desde um personagem que lê seu memory card e sabe qual foi o último jogo que você jogou, até questões sobre problemas na democracia —, nesse último lançamento, sua inspiração literária foi além.
Cito três referências literárias presentes em “Death Stranding”:
Talvez a mais óbvia, porque ultimamente mais produções da cultura pop têm parodiado o terror cósmico, é Lovecraft. Embora não sejam propriamente cósmicas, as criaturas que Norman Bridges, o protagonista, enfrenta compartilham algumas características com os seres de Lovecraft, como os tentáculos faciais do Cthulhu e a atmosfera inefável e pós-apocalíptica, que remetem aos contos do escritor.
Agora, uma referência um pouco menos conhecida, porém direta, é o robozinho que acompanha o protagonista. Seu nome é Odradek, como a criatura do conto “Preocupações de um Pai de Família”, escrito por Kafka. Como a descrição do Odradek é bastante bizarra e imprecisa, o robozinho é bem pertinente por ser uma vareta articulada, com um tipo de estrela na ponta. Mas, diferente do Odradek do conto, que parece não ter função nem objetivo, apenas consequências, o do jogo escaneia o ambiente, sente a presença de ameaças e pode servir de lanterna. Acontece que mais uma coisa que conecta esses Odradeks, além do nome, é a angústia que eles causam. Talvez o Odradek do conto não parecesse ter funcionalidade pela distância entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Com o fim dessa barreira entre essas dimensões, o Odradek passou a conseguir se comunicar melhor conosco.
A referência menos óbvia, ainda que possam existir outras, é “O Leilão do Lote 49”, de Thomas Pynchon. No romance, Aedipa Mass é incumbida da função de inventariante de seu amigo Pierce Inverarity. Conforme ela vai explorando a cidade, na qual parece que Pierce é proprietário de tudo, uma rede de sistemas de entrega, correios, Thurn und Taxis, e o mais misterioso de todos, Tristero, disputam os espaços pela hegemonia postal. Algo muito parecido com o que acontece no jogo. Há a Bridges, que tenta se reconstruir; a Fragile, que tem a confiança dos dissidentes de uma América devastada; e as mulas, que são viciadas em entregas, mas ficam à margem de qualquer organização.
A forma carregada de elementos aparentemente desconexos e que estimulam a constante desconfiança do jogador em relação aos coadjuvantes também é muito semelhante à narrativa de Pynchon. Ambos escolheram o caminho mais difícil para contar suas histórias.
Hideo Kojima já é considerado um dos maiores roteiristas e diretores dos jogos eletrônicos. Acredito que ele deva se consolidar como um dos grandes nomes da história da cultura, e suas obras, como clássicos instantâneos.