Melhor filme brasileiro de 2024, até agora, foi aplaudido de pé por 12 minutos em Cannes Divulgação / Pandora Filmes

Melhor filme brasileiro de 2024, até agora, foi aplaudido de pé por 12 minutos em Cannes

“Motel Destino” é o filme mais quente do Festival de Cannes, diz a “Vanity Fair” — e o mais ardiloso também, acrescento eu. Por trás da lascívia quase gratuita de corpos nus, há o desejo visceral de Karim Aïnouz de conhecer o que está por trás de almas perdidas, todas no estabelecimento nomeado no título, um tipo de inferno que nem mesmo Dante Alighieri (1265-1321) saberia imaginar. Três personagens centrais e outros tantos presos num lugar onde afloram os instintos mais básicos do ser humano, tudo isso emoldurado por uma paisagem agreste e excitante, tentam se descobrir, se entender, o primeiro inicial de uma longa jornada por dédalos de luz néon que emulam os próprios meandros do existir. 

Junto com os corroteiristas Wislan Esmeraldo e Mauricio Zacharias, Aïnouz fura a bolha de conservadorismo e tacanheza intelectual que parece ter grudado no Brasil nos últimos cinco anos e dá ao público muito mais que o pão e o circo de que vive o cinema de Pindorama, malgrado saiba que esta seja a isca mais óbvia para capturar a audiência, sobretudo em mostras internacionais como a do balneário da Riviera Francesa. Não sei dizer com a devida precisão em quanto aumenta o turismo ao litoral do Ceará, onde se passa a história — o turismo sexual, inclusive —, porém se os gringos nos enxergam como a carne mais barata do mercado, por nosso turno sabemos fazer do limão uma caipirinha, para adubar um pouco mais o clichê, e provar somos mais que um Brasil que canta, transa e é feliz.

Após o confuso prólogo, um marginal-galã enfurna-se no tal motel Destino. Heraldo pretende cometer um grande assalto e hospeda-se ali, para uma noite de sexo sem compromisso, mas, claro, seus planos fogem ao controle. Ele é vítima de um furto, se atrasa e o ladrão a quem iria acompanhar é morto. O Destino entra em sua vida como um improvável refúgio, um álibi e um purgatório, ao menos até que a poeira assente e ele possa, afinal, retomar seu caminho torto. O diretor vai fazendo com que o público se familiarize com aquele cenário, lançando mão de suspiros, gemidos, urros, na certeira engenharia de som chefiada por Fernando Aranha, ao passo que também instiga-lhe repulsa, uma vez que nunca se pode com certeza se esses ruídos não escondem abusos, parafilias, perversões não consensuais e crimes, recurso levado ao ponto do estranhamento sublime em “Zona de Interesse” (2023), dirigido por Jonathan Glazer. Enxertos de corredores em azul, verde e vermelho bem destacados pela fotografia de Hélène Louvart começam a levar o filme para uma outra abordagem, ainda mais intimista e perturbadora, momento para que se conheça, enfim, quem é Heraldo de verdade. 

Evidentemente, o assaltante não passaria seus dias num quarto de motel apenas esperando que os ponteiros deem voltas no relógio. Aïnouz entra de vez na natureza sensual da história ao incluir Elias e Dayana, o dono do Destino e sua mulher, e aí o longa explode. Aquele ambiente psicodélico e algo futurista oferece as condições ideais para o romance ordinário de três figuras vulgares, algo sujas, e esse é um caminho sem volta. Se Iago Xavier fora o senhor do enredo até aqui, Fábio Assunção e Nataly Rocha impõem-se com as dores muito cruas e inescrutáveis de Elias e Dayana, que parecem viver uma solidão a dois de mil desertos, que vê em Heraldo uma chance de transformação real. As cenas entre Assunção e Xavier são encantadoramente desconfortáveis, muito longe de sugerir uma aproximação homoafetiva. 

Haroldo está sempre esquivando-se das investidas do outro homem, um sádico sem escrúpulos que assiste às estripulias de alcova de seus hóspedes por um dispositivo rudimentar, mas engenhoso, o que lembra “Voyeur” (2017), o documentário de Myles Kane e Josh Koury, que nos remete a “O Voyeur” (2016) e “A Mulher do Próximo: Uma Crônica da Permissividade Americana Antes da Era da Aids” (1980), os livros-reportagem de Gay Talese. Dayana e o próprio Haroldo, não são santos, por óbvio, mas o antagonista de Assunção, ostentando insinuantes músculos abdominais depois de uma dieta de três semanas à base de ovos, é a própria encarnação do mal nessa mistura de “A Vida Invisível” (2019), “Praia do Futuro” (2014) e “Madame Satã” (2002).


Filme: Motel Destino
Direção: Karim Aïnouz
Ano: 2024
Gêneros: Thriller/Romance/Erótico 
Nota: 9/10