Uma buzina no rabo de cada paulistano Foto / Hans Elmo

Uma buzina no rabo de cada paulistano

Alto lá. Não saquem as armas no saloon. Eu sou apenas um escritor parodiando o Belchior. Não o Belchior da bíblia. O cearense. O saudoso cantor Belchior. Tô fazendo uso de uma hipérbole para dar mais ênfase ao texto. A clara descompostura e o aparente mau humor do título não têm nada a ver com o fato de eu ter dormido de calça jeans. Não. Isso não. Desentendimentos entre casais são coisas que acontecem. Aliás, caminhava com a minha gata pelo bairro de Pinheiros, em São Paulo, absolutamente impressionado com a aberrante sinfonia de buzinas que me agredia os tímpanos.

A poluição sonora paulistana remeteu-me ao desenho animado “Motor Mania”, produzido e lançado pelos Estúdios Disney, em 1950. No icônico cartoon, Pateta, o carismático cachorro com ar apalermado, é acometido por transformações psíquicas hediondas ao dirigir pelo caótico trânsito de uma metrópole. Ao buscar espaço para os carros, ao minimizar a perda de tempo dirigindo, motoristas e motociclistas pareciam legítimos patetas atrás do volante de suas máquinas de fazer doidos, uma raiva inexplicável.

Gosto de São Paulo. Apesar de tudo, adoro passear pela cidade de São Paulo. Não sei se conseguiria viver ali. Mesmo assim, penso em me mudar para SP — onde não existe amor, de acordo com o cantor Criolo — depois que me aposentar, se eu me aposentar. Morte. Aposentadoria. Insanidade mental. O que vir primeiro eu topo. No ritmo em que a situação caminha, em breve, teremos que trabalhar até morrer para bancar o abismal rombo da presidência social do estado.

Atravessava a faixa de pedestres na esquina da Teodoro Sampaio com a Capote Valente. Tinha ido visitar as inúmeras lojas de instrumentos musicais da Teodoro, em busca de uma guitarra elétrica. Sim. Vocês estão corretos. Pouca gente estava entendendo aquela história de querer comprar uma guitarra elétrica aos 58 anos de idade. Não. Não se empolguem. Isso não é um convite. Não estou recrutando ninguém para montar uma banda de rock. O vizinho da casa da casa onde moro, no planalto central do país, de alguma forma, ficou sabendo das minhas intenções a respeito da aquisição do instrumento e já enviou sinais de fumaça avisando que, se tiver barulho, vai ter denúncia, vai ter retaliação ou vai ter bala. O decrépito velhote é militar da reserva das forças armadas, provavelmente impotente e com graves ímpetos golpistas contra a democracia. Até acampar durante dias na frente na frente de um batalhão do exército, o coronel de pijamas fez. Mas, deixemos de lado os radicais. Por hora, vamos tocando a vida. E a guitarra também.

Como eu dizia, atravessava sobre a faixa de pedestre, alguns passos à frente da minha companheira, quando cruzei por dois sujeitos coloridos que vinham em sentido contrário. Não pus reparo especial na dupla. Quando pisamos na calçada breada com bosta de cachorro, ela gargalhou e disse que eu precisava tomar cuidado, ficar esperto, pois, estava fazendo sucesso. É isso o que as mulheres dizem para ameaçar os homens. Elas enxergam tudo. São criaturas demoníacas. Ela me disse que um dos sujeitos quase quebrou o pescoço ao virar a cabeça subitamente e mirar o meu traseiro durante a travessia. Eu sorri, dei de ombros. Não tinha tanta certeza de que faria sucesso com gays por causa dos tímidos predicados das minhas nádegas macilentas e combalidas.  

Sou um sujeito usado. Quase um clássico. Sempre que visitava a cidade de São Paulo, passeava pela Feira de Antiguidades da Praça Benedito Calixto, situada também no bairro de Pinheiros. É um evento encantador que acontece aos sábados pela manhã. Na feirinha, sinto-me animado como pinto no lixo. Cisco nas bancas de discos de vinil. Espirro sobre as páginas emboloradas de livros antigos. Aprecio a coleção de garruchas da época do Império. Com enorme dificuldade motora e visual, consigo fazer uma selfie em frente à barraca que vende máquinas fotográficas do século passado. Experimento — mas, não compro — uma infinidade de roupas coloridas, descoladas, com estampas espalhafatosas que, lamentavelmente, não me permito usar. Ainda. A guitarra era só o começo. Tomo um chope geladíssimo na calçada, em frente a uma galeria repleta de gente bonita e bem-humorada que vai às compras. Fico mal-humorado quando gasto dinheiro. Ninguém é perfeito. Termino o tour saboreando a deliciosa feijoada que servem no restaurante Consulado Mineiro. Goianos e mineiros são muito parecidos, portanto, sinto-me em casa.

Levemente ébrio, chego à conclusão de que o torresmo é inocente. O que matava as pessoas não era a pururuca, a barriga de porco frita, mas, rancor e estresse. Sofrimentos bestas, irracionais, animalescos, como dirigir de forma tresloucada tacando a mão na buzina pelas caóticas ruas paulistanas, a fim de abrir caminho e “ganhar tempo”. Por falar em tempo, quase comprei um relógio antigo, um Technos prateado, com pulseira elástica, idêntico ao que papai usava anos 1970. Apesar do apelo sentimental da peça rara, evito o gasto perdulário. Tinha outras formas mais baratas e mais eficazes de me lembrar do velho. Música, por exemplo. Não gostava de usar relógio. Na verdade, andava pistola com o tempo. Digladiávamos diuturnamente.

Enquanto subia a pirambeira da Teodoro Sampaio em direção ao cruzamento com a Capote Valente, percebi que não era um homem tão valente quanto imaginam de mim. A bunda caiu. A pressão arterial subiu. Os cabelos escassearam. A minha batata estava assando que nem a bisteca de porco deliciosa que serviam no Consulado Mineiro. A comida de lá continuava ótima; a vida, nem tanto. Era por isso que eu queria comprar uma guitarra elétrica.