Vida e Destino, de Vassili Grossman: o coração humano em meio às sombras da história

Vida e Destino, de Vassili Grossman: o coração humano em meio às sombras da história

Uma das relações mais fascinantes que se pode estabelecer é entre a ficção e a História oficial. É comum que as listas de livros mais importantes da literatura tenham como pano de fundo um significativo afresco histórico. As semelhanças entre o texto literário e o historiográfico são inúmeras e, em ambos, há a presença de um ser escrevente que organiza fatos e ações dos homens inseridos no tempo, papel de todo historiador, como queria Marc Bloch. Assim, ver em um romance a presença da história nos ajuda a tirar a ciência que estuda as ações dos homens inseridos no tempo de seu estado de coisa fria e distante. Ajuda a ver como a história é o palco de todos nós.

A Rússia, lar de tantos autores geniais como Tolstói e Dostoiévski, possui uma literatura rica em contextualização histórica. Vale lembrar que Otto Maria Carpeaux, na História da Literatura Ocidental, não hesita em dizer que toda a literatura russa é engajada. Nesse panteão de autores brilhantes que muitas vezes se assemelham a historiadores, temos, sem dúvida, Vassili Grossman.

“Vida e Destino”, sua obra monumental, publicada postumamente em 1980, é muitas vezes comparada a “Guerra e Paz” de Tolstói. Ela oferece uma visão abrangente e profundamente humana sobre a Segunda Guerra Mundial, a sociedade soviética e a natureza humana. Através de sua narrativa complexa e personagens multifacetados, Grossman explora temas como totalitarismo, liberdade, sacrifício e a persistência do espírito humano.

Vassili Grossman
Vida e Destino, de Vassili Grossman
(Alfaguara, 920 páginas)

Vassili Grossman nasceu em 1905 em Berdichev, uma cidade do Império Russo. Hoje, Grossman seria cidadão da Ucrânia. Trabalhou como jornalista e escritor e é mais conhecido por seus relatos como correspondente de guerra durante a Segunda Guerra Mundial. Seu testemunho da Batalha de Stalingrado e da libertação dos campos de concentração nazistas influenciou profundamente sua escrita. Grossman começou a escrever “Vida e Destino” em 1950 e o concluiu em 1960. No entanto, devido ao seu conteúdo crítico ao regime soviético, a KGB confiscou o manuscrito em 1961, e o livro só foi publicado após sua morte, fora da União Soviética.

“Vida e Destino” é estruturado em torno de várias tramas interligadas que ocorrem durante a Batalha de Stalingrado. Através de uma narrativa não linear, Grossman tece um mosaico de experiências humanas, abrangendo desde soldados na linha de frente até civis na retaguarda, prisioneiros de guerra e membros do Partido Comunista. A obra é composta por três partes principais, cada uma explorando diferentes aspectos da vida durante a guerra.

Personagens emblemáticos constroem o enredo, sem fazer com que a historicidade mate a literatura que o texto deve preservar. O personagem Viktor Shtrum é um físico judeu e um alter ego de Grossman. Sua trajetória profissional e pessoal reflete as tensões e pressões enfrentadas por intelectuais e cientistas na União Soviética. Viktor enfrenta dilemas morais e éticos, especialmente em relação à sua lealdade ao regime e à sua integridade científica.

Lyudmila Shtrum, esposa de Viktor, lida com a perda de seu filho na guerra e o conflito entre seus deveres familiares e suas convicções pessoais. Novikov é um comandante militar que representa a coragem e o sacrifício dos soldados soviéticos. Sua relação com Krymov é central para explorar a camaradagem e os dilemas éticos na linha de frente. Krymov, um comissário político, enfrenta a brutal realidade do totalitarismo soviético, questionando suas crenças e lealdades.

A narrativa se passa principalmente no período da Batalha de Stalingrado, com cenários que vão desde as linhas de frente até campos de concentração nazistas e gulags soviéticos, além de apartamentos em Moscou e outras cidades russas. O romance começa com a Batalha de Stalingrado em pleno andamento. Os personagens estão dispersos em vários locais, cada um lidando com os horrores e desafios da guerra. Viktor Shtrum trabalha em um instituto de pesquisa e enfrenta tanto os rigores científicos quanto as repressões políticas do regime stalinista. Sua esposa, Lyudmila, representa a luta pessoal e sentimental, com a dor da perda de seu filho na frente de batalha.

À medida que a batalha se intensifica, as vidas dos personagens se entrelaçam de maneiras inesperadas. Viktor Shtrum, apesar de suas contribuições científicas significativas, enfrenta suspeitas e perseguições por causa de suas origens judaicas e opiniões independentes. Ele recebe uma ligação de Stalin, que aprova seu trabalho, trazendo-lhe uma reviravolta momentânea na carreira. No entanto, essa aprovação vem ao custo de sua integridade moral, ao exigir que ele renuncie a seus princípios para se conformar às exigências do regime.

Enquanto isso, outros personagens enfrentam seus próprios dilemas morais e existenciais. Krymov é preso e interrogado, passando por uma transformação pessoal ao questionar sua fé no partido. Evgenia e Novikov, lidando com os desafios da guerra, encontram conforto um no outro, enquanto Stepan Spiridonov representa a luta e a esperança da classe trabalhadora.

O romance não oferece uma conclusão definitiva, refletindo a natureza contínua e incerta da vida sob regimes totalitários. Viktor Shtrum, após passar por crises pessoais e profissionais, faz uma escolha difícil entre a conformidade e a integridade, simbolizando a luta interna que muitos enfrentaram. A guerra continua, e a vida dos personagens segue em um estado de suspensão e incerteza, destacando a complexidade e a ambiguidade das experiências humanas durante tempos de conflito e opressão.

“Vida e Destino” transcende o contexto histórico específico, oferecendo uma meditação profunda sobre a natureza humana, a liberdade e o poder corrosivo dos sistemas políticos sobre a vida e o destino dos homens comuns. Grossman examina a natureza opressiva do regime soviético e do nazismo, mostrando como ambos os sistemas totalitários esmagam o indivíduo. Ele expõe os paralelos entre as duas ideologias, destacando a supressão da liberdade, a propaganda e a violência estatal. O conflito entre totalitarismo e liberdade é personificado em Viktor Shtrum, cuja luta para manter sua integridade intelectual em face das pressões políticas é um dos pontos altos do romance.

Apesar da escuridão que permeia “Vida e Destino”, Grossman celebra a resiliência do espírito humano. Ele ilustra como a bondade, a compaixão e o sacrifício pessoal persistem mesmo nas circunstâncias mais desumanas. Este tema é evidente nas ações de personagens como Sofya Levinton, uma médica que se sacrifica pelos outros, e Zhenya Shaposhnikova, que luta para manter sua dignidade em um campo de prisioneiros.

Grossman oferece uma visão abrangente da guerra, explorando não apenas a batalha em si, mas também suas implicações sociais e psicológicas. Ele descreve a desumanização dos indivíduos, a brutalidade e o sofrimento, mas também a solidariedade e a esperança que emergem em tempos de crise. Grossman emprega uma prosa límpida e detalhada, combinando realismo com profundidade filosófica. Suas descrições vívidas das batalhas e da vida cotidiana proporcionam uma imersão total no mundo do romance. Ele utiliza uma ampla gama de perspectivas narrativas, permitindo ao leitor compreender a complexidade da experiência humana durante a guerra.

Assim como “Guerra e Paz” de Tolstói, “Vida e Destino” explora a interseção entre a grande história e as vidas individuais. Ambos os romances apresentam um vasto elenco de personagens e eventos históricos, mas mantêm um foco constante nas emoções e dilemas pessoais. No entanto, enquanto Tolstói oferece uma visão otimista da capacidade humana para o progresso, Grossman é mais cético, enfatizando as forças opressivas que ameaçam a liberdade e a dignidade humana.

Seu impacto vai além da literatura, oferecendo uma crítica penetrante ao totalitarismo e uma reflexão profunda sobre a condição humana. A coragem de Grossman em escrever e preservar este romance, apesar da repressão, é um testemunho de seu compromisso com a verdade e a liberdade.

Hoje, “Vida e Destino” continua a ser estudado e admirado, não apenas como um documento histórico, mas também como uma obra de arte literária que desafia e inspira os leitores. Através de sua narrativa poderosa e humanista, Grossman nos lembra da importância da resistência moral e da capacidade de encontrar esperança e dignidade mesmo nas situações mais sombrias. Viktor Shtrum também simboliza a luta entre a verdade científica e a conformidade política. A pressão para que ele renuncie às suas descobertas científicas em nome da ideologia estatal representa a tentativa do regime de subordinar a verdade à propaganda. Grossman, através de Shtrum, clama pela liberdade de pensamento e pela integridade moral.

“Vida e Destino” é um romance que celebra a capacidade humana de resistir e sobreviver, mesmo em meio à maior adversidade. Ele destaca a importância da compaixão e da solidariedade, características que emergem em personagens como Sofya Levinton, que sacrifica sua própria vida para confortar uma criança no campo de concentração. Este ato de auto-sacrifício é um testemunho do poder da bondade humana, um farol de luz em meio à escuridão da guerra e da opressão.

A Batalha de Stalingrado serve como um microcosmo da guerra total. Grossman oferece uma visão caleidoscópica dos horrores do conflito, desde os soldados na linha de frente até os civis presos no cerco. Ele expõe a brutalidade da guerra, mas também revela momentos de humanidade e coragem que surgem em meio ao caos. Grossman não poupa detalhes sobre o sofrimento dos indivíduos, sejam eles soldados, civis ou prisioneiros. Ele descreve com precisão o impacto psicológico da guerra e as cicatrizes profundas deixadas nas almas daqueles que sobrevivem.

“Vida e Destino” recebeu aclamação global após sua publicação, com críticos e escritores elogiando a profundidade e a abrangência da obra. Robert Chandler, tradutor e estudioso da obra de Grossman, afirmou que “Vida e Destino” é uma das maiores realizações literárias do século 20. Chandler destaca a coragem de Grossman em abordar temas tão sensíveis e em criticar abertamente o regime soviético. Varlam Shalamov, autor de “Contos de Kolimá”, elogiou Grossman por sua honestidade brutal e por seu compromisso com a verdade. Shalamov, que também sofreu sob o regime stalinista, viu em Grossman um espírito afim, alguém que não tinha medo de confrontar as realidades mais sombrias da vida soviética.

“Vida e Destino” continua a ser relevante no mundo contemporâneo, especialmente em um momento em que questões de autoritarismo, liberdade e direitos humanos estão em foco globalmente. A obra de Grossman oferece lições importantes sobre a resistência moral e a importância de defender a verdade contra a opressão.

Acadêmicos continuam a explorar a obra de Grossman, investigando suas influências filosóficas, seu estilo literário e seu impacto cultural. Na USP, no Centro de Estudos de Literatura Russa que lá se desenvolve, vários seminários e palestras já foram dadas e continuam sendo realizadas a respeito da obra no Laboratório de Estudos do Romance (LERO). Para aprofundar a compreensão dos temas levantados em “Vida e Destino”, é útil examinar trechos específicos do livro e analisar como Vassili Grossman desenvolve suas teses.

A seguir, vejamos seis trechos exemplares: “O ódio, como a vontade de poder, cega os homens. Mas a liberdade, a bondade e a justiça abrem-lhes os olhos. O ódio destrói tudo o que vê; a bondade restaura tudo o que toca”.

Este trecho encapsula a visão de Grossman sobre os efeitos corrosivos do totalitarismo e o poder restaurador da liberdade e da bondade. Grossman usa uma dicotomia simples mas poderosa para contrastar as forças opressivas com as virtudes libertadoras. Aqui, ele sugere que, embora o ódio e o poder sejam autodestrutivos e cegos, a liberdade, a bondade e a justiça são esclarecedoras e restauradoras. Esse contraste é central para a crítica de Grossman aos regimes totalitários que, ao oprimir e controlar, destroem a essência humana, enquanto a liberdade permite que os indivíduos floresçam.

“Mesmo nas profundezas da escuridão, o homem mantém a capacidade de escolher entre o bem e o mal. Esta escolha é a essência da liberdade.”

Neste trecho, Grossman destaca a capacidade inerente do ser humano de fazer escolhas morais, mesmo nas situações mais desesperadoras. Esta visão reflete seu humanismo e sua crença na dignidade humana. A escolha entre o bem e o mal é apresentada como a verdadeira essência da liberdade, sugerindo que a liberdade não é apenas uma condição externa, mas uma qualidade intrínseca do espírito humano. Grossman, portanto, argumenta que, independentemente das circunstâncias, a capacidade de escolha moral permanece intacta e é fundamental para a identidade humana.

“A guerra não apenas destrói cidades e campos, mas também a alma dos homens. Ela muda para sempre aqueles que a testemunham.”

Grossman descreve a guerra não apenas em termos de destruição física, mas também de devastação psicológica. Este trecho destaca como a guerra transforma os indivíduos, deixando cicatrizes profundas na psique humana. Ao abordar a guerra de uma perspectiva tão íntima e pessoal, Grossman humaniza o conflito, mostrando que seus verdadeiros custos são medidos na perda da integridade e da inocência humanas. Esta visão é central para a narrativa de “Vida e Destino”, onde a guerra é retratada como uma força desumanizadora que altera irrevogavelmente todos os que a vivenciam.

“A verdade é sempre o primeiro alvo dos tiranos. Eles temem a verdade mais do que qualquer arma, pois a verdade tem o poder de libertar os homens.”

Este trecho sublinha a centralidade da verdade na luta contra o totalitarismo. Grossman sugere que regimes opressivos temem a verdade porque ela tem o potencial de despertar a consciência e inspirar a resistência. A verdade, portanto, é vista como uma força libertadora, capaz de desafiar a propaganda e a manipulação. Essa visão é ilustrada no romance através da luta de Viktor Shtrum para manter sua integridade científica diante das pressões políticas, simbolizando a batalha mais ampla entre a verdade e a opressão.

“Em meio à desesperança, pequenas ações de bondade tornam-se atos de heroísmo.”

Grossman celebra os pequenos atos de bondade que, em tempos de desespero, assumem um significado heroico. Este trecho ressalta a importância das ações individuais e da compaixão, mesmo nas circunstâncias mais adversas. Através de personagens como Sofya Levinton, Grossman mostra que a humanidade persiste, mesmo no inferno da guerra e da opressão. Estas pequenas ações de bondade servem como uma luz na escuridão, reafirmando a dignidade e a resiliência do espírito humano.

“Stalingrado não era apenas uma batalha; era um teste da alma humana, um confronto entre a luz e a escuridão.”

Neste trecho, Grossman eleva a Batalha de Stalingrado a um nível quase mítico, descrevendo-a como um teste da alma humana. Ele vê o conflito como uma metáfora para a luta mais ampla entre o bem e o mal, entre a luz e a escuridão. Esta visão épica da batalha reflete a crença de Grossman na importância moral dos eventos históricos e na capacidade dos indivíduos de mostrar coragem e humanidade em meio à maior adversidade. A Batalha de Stalingrado, portanto, torna-se um símbolo da resistência e da esperança humanas.

Grossman revela como o totalitarismo destrói a individualidade, manipula a verdade e aniquila a liberdade. Ler “Vida e Destino” ajuda-nos a compreender os perigos de sistemas políticos que subordinam o indivíduo ao Estado, fornecendo uma reflexão crucial sobre os desafios contemporâneos à liberdade e aos direitos humanos.

A estrutura complexa de “Vida e Destino”, com suas múltiplas tramas e personagens entrelaçados, proporciona uma experiência de leitura rica e desafiadora. Temos nas páginas desta obra uma meditação sobre questões filosóficas e éticas. Ele nos força a confrontar dilemas morais, a refletir sobre o valor da verdade e da liberdade. Essas reflexões são não apenas intelectualmente estimulantes, mas também emocionalmente impactantes, ajudando-nos a desenvolver uma compreensão mais profunda da nossa própria humanidade.

Grossman, como correspondente de guerra e testemunha ocular dos eventos que narra, oferece uma perspectiva autêntica e visceral sobre esses acontecimentos. Ler este romance nos conecta a essas experiências históricas de uma maneira íntima e empática. A obra de Grossman oferece uma perspectiva crítica e esclarecedora sobre os problemas que ainda enfrentamos hoje, proporciona um enriquecimento intelectual significativo, oferecendo insights profundos sobre a história, a política e a filosofia. A complexidade da narrativa e a profundidade das reflexões de Grossman desafiam o leitor a pensar criticamente e a engajar-se com questões fundamentais.

A obra de Grossman captura a dor, o sofrimento, a esperança e a resiliência de seus personagens. Esta experiência emocional ajuda o leitor a desenvolver empatia e compreensão, conectando-se mais profundamente com as experiências dos outros. Os temas de coragem, bondade e resistência moral presentes no romance são inspiradores. Eles nos encorajam a refletir sobre nossas próprias ações e escolhas, e a considerar como podemos manter nossa integridade e humanidade em situações desafiadoras. A habilidade narrativa de Grossman, sua prosa límpida e poderosa, e sua capacidade de criar personagens complexos e realistas fazem desta obra uma leitura essencial para qualquer amante da literatura.

Ao ler este romance, ganhamos não apenas uma melhor compreensão do passado, mas também uma perspectiva crítica e esperançosa sobre o presente e o futuro.