Sofia Coppola nos presenteia com “Somewhere”, um filme que provoca uma reflexão sutil: o público o apreciará por sua concepção e execução cuidadosas ou pela simples curiosidade de espiar a vida de uma elite privilegiada? Este dilema reflete a dualidade da obra, que transita entre o fascínio pelo glamour de Hollywood e uma crítica à superficialidade desse mundo. Coppola desafia as convenções do cinema, ignorando as regras tradicionais para criar uma experiência que é ao mesmo tempo minimalista e ousadamente experimental.
Nos primeiros 15 minutos, o filme pode parecer distante, seguindo um sujeito desleixado interpretado por Stephen Dorff. Sua vida é monótona: ele testa carros esportivos, assiste a gêmeas fazendo pole dance em seu quarto de hotel e atrai sorrisos femininos onde quer que vá, mesmo com sua aparência negligente. Inicialmente, é difícil entender por quê, até que se revela: ele é uma grande estrela de cinema. Esse ponto de virada torna “Somewhere” mais intrigante, levantando a pergunta: nos importamos com esse homem? Quando ele desaba ao telefone com a ex-esposa, lamentando como se sente vazio e insignificante, o espectador é convidado a ponderar se deve simpatizar com ele ou vê-lo como um símbolo da alienação no mundo das celebridades.
Coppola expõe o luxo apenas para revelar a miséria oculta sob a superfície. Ela utiliza detalhes sutis, como o zumbido de um motor nos créditos de abertura e o timing preciso das cenas, para desarmar lentamente o espectador, mergulhando-o em uma estética onde cada detalhe conta. A sensação de desumanização é palpável; essas figuras públicas parecem ter perdido sua identidade em meio ao excesso de privilégios.
Elle Fanning, como a filha de 11 anos do protagonista, adiciona uma camada significativa à narrativa. Forçada a conviver com o pai, ela observa com olhos críticos o mundo ao seu redor — um mundo de hotéis de luxo, viagens a Milão e uma negligência emocional constante. A relação entre pai e filha, marcada por um amor silencioso e distante, revela as profundas cicatrizes emocionais que o mundo do glamour não consegue esconder. Coppola prefere explorar as fissuras dessa relação a provocar uma conexão emocional direta com o público. Os temas recorrentes da diretora — corredores de hotel, conversas banais e a luz oscilante vista de uma janela de carro — encontram aqui uma sintonia perfeita, reforçando a alienação dos personagens.
À medida que a narrativa avança, vemos Dorff redescobrindo seu papel de pai ao testemunhar a transformação de sua filha em mulher. Pela primeira vez, ele enxerga as mulheres não como objetos de desejo, mas como seres humanos complexos, despertando para seu novo papel de protetor. Coppola oferece um olhar objetivo, porém profundamente feminino, sobre a masculinidade, capturando detalhes que talvez apenas uma mulher notasse. A câmera baixa e estática, reminiscente de “Jeanne Dielman” de Chantal Akerman, força os personagens a se curvarem ou terem suas cabeças cortadas pelo quadro, reforçando essa perspectiva única.
Na parte final, “Somewhere” revisita cenários anteriores, mas agora Marco, humanizado, reflete sua evolução silenciosa. A ausência de diálogos excessivos destaca a força do não dito, e quando ele finalmente tenta verbalizar seu tumulto interno, as palavras falham. Essa sutileza, combinada com uma estrutura que desafia normas estabelecidas, torna “Somewhere” uma obra revolucionária, firmemente segura em sua quietude e delicadeza.
Coppola nos oferece, assim, uma obra que desconstrói e reconstrói o cinema, revelando a fragilidade humana escondida sob o brilho ilusório da fama. “Somewhere” transcende a mera exposição de luxo, convidando-nos a explorar as camadas mais profundas da solidão e da vulnerabilidade humanas. Em um universo onde até os momentos mais triviais se tornam reveladores, Coppola nos lembra de que, por trás de todo o glamour, a verdadeira essência humana permanece inescapável. O resultado é uma experiência cinematográfica fascinante, que desafia expectativas e reafirma a relevância do filme no panorama contemporâneo.
Filme: Somewhere
Direção: Sofia Coppola
Ano: 2010
Gêneros: Comédia/Drama/Romance
Nota: 9/10