Se toda forma de amor vale a pena, por que não considerar que o mais humano dos sentimentos possa, com a licença do trocadilho, humanizar sujeitos um tanto perdidos em sua bestialidade? Essa parece ser a intenção de Wasuthep Ketpetch em “Dívida de Amor”, o que já haviam feito antes. A releitura do tailandês para “Um Homem Apaixonado” (2021), de Yin Chen-hao, sobre um aprendiz de gângster que fraqueja no cumprimento de uma tarefa e sente o coração balançar quando conhece uma garota vulnerável, oscila do aspiração romântica para a luta pela sobrevivência, e Ketpetch tira todo o proveito que pode de cenários naturalmente encantadores, que a fotografia de Wongwattana Chunhavuttiyanon trata de fixar na memória do espectador. O roteiro de Meathus Sirinawin passeia por ruas estreitas de Bangcoc com esses dois cães vadios, e quem assiste se flagra padecendo de um misto de comiseração e deslumbramento, até que a personalidade instável do antimocinho fala mais alto e a história envereda por um andamento melodramático e até noir.
Numa das muitas cenas ambivalentes do filme, Bo, o tal lugar-tenente da máfia, cobra um débito de uma mulher transgênero, e quando percebe que seus argumentos não são o bastante para levar a termo sua tarefa, quebra vasos e copos em sua própria cabeça, como se num anúncio de que a vítima escapou de castigo muito mais cruel. Esse método de trabalho, digamos, peculiar, lhe garante uma generosa porção de cicatrizes e um ou outro filete de sangue, incômodos visuais que o diretor também explora, e que Vachirawit Chivaaree transforma em mais que um estigma. Ketpetch é competente ao vislumbrar no texto de Sirinawin essas pequenas indicações, e a abordagem a um só tempo repulsiva e sedutora de Chivaaree para Bo encarregam-se de fazer o resto. As aparições-relâmpago do anti-herói, como se um fantasma, preparam o enredo para seu alívio cômico-romântico: ele vai a um hospital, à cata de mais um devedor, e encontra uma garota a tomar conta de um velho doente. Ele já estava pronto para devorar sua presa, quiçá se valesse de sua pantomima automutiladora, mas a moça não se mostra impressionada. É claro que ele se apaixona.
Esse é sem dúvida o segmento mais cativante do longa. Depois de oferecer o perdão da dívida mediante uma série de encontros que, por óbvio, irão dar num namoro conturbado e cheio de lances nada previsíveis, o mote do formulário que Bo deverá completar, assinalando em amarelo as vezes em que ele se insinua e a toca sem consentimento, confere a tudo quanto se viu até então um providencial toque à Blake Edwards (1922-2010), e se Chivaaree era o dono da bola, seu reinado chega ao fim com a entrada em cena de Urassaya Sperbund. Sua Im equilibra ternura e um desalento meio orgulhoso, e os dois juntos fazem um filme à parte. Num híbrido de “Namorados para Sempre” (2010), dirigido por Derek Cianfrance, e “Drive” (2011), levado à tela por Nicolas Winding Refn, “Dívida de Amor” abre-se para um melancólico e charmoso antirromance, uma vez que o passado de Bo não se apaga só porque o cupido o flechou e as coisas começam a andar com Im. Mas o amor é lindo mesmo torto.
Filme: Dívida de Amor
Direção: Wasuthep Ketpetch
Ano: 2024
Gêneros: Drama/Romance
Nota: 8/10