Se há um filme obrigatório na vida, é a obra-prima de Rob Reiner, disponível na Netflix Divulgação / Columbia Pictures

Se há um filme obrigatório na vida, é a obra-prima de Rob Reiner, disponível na Netflix

A infância é um período singularmente propício para refletir sobre as mudanças inevitáveis que a vida nos reserva. Em “Conta Comigo”, dirigido por Rob Reiner, essas transformações são exploradas com uma sensibilidade que guia o espectador através de um percurso tanto sereno quanto turbulento, ao acompanhar as primeiras vivências de quatro garotos. O filme evita soluções fáceis, afastando-se do simplório e frequentemente rejeitando a idealização do belo ou do lúdico, oferecendo uma experiência cinematográfica que desafia o público a uma reflexão mais profunda.

Reiner, ciente de que essas quatro figuras nos são familiares, ainda que de forma inconsciente, convida-nos a reconhecer nelas aspectos de nós mesmos, à medida que suas imagens se tornam progressivamente mais nítidas, culminando em uma identificação inescapável. Essa conexão só se concretiza quando nos permitimos deixar de lado os medos que pesam sobre o coração, permitindo que ele se eleve livremente, sem as amarras das experiências passadas.

A adaptação de Bruce A. Evans e Raynold Gideon do conto “O corpo”, presente na coletânea “Quatro Estações” (1982) de Stephen King, preserva o suspense característico da obra do autor, embora restrito a momentos pontuais. O foco principal do filme, no entanto, está em sua narrativa fluida e cuidadosamente estruturada, que integra de forma harmoniosa os episódios paralelos à trama principal, refletindo a riqueza das imaginações vívidas e sem censura das crianças. O filme se inicia com um flashback que revela o trágico destino de Christopher Chambers, esfaqueado ao tentar intervir em uma briga.

 A morte de Chambers, vivido por River Phoenix (1970-1993) em sua infância, não provoca um impacto imediato devastador, graças à habilidade do diretor em suavizar a brutalidade do crime, conectando-o sutilmente à premissa central da narrativa, especialmente na conclusão. À medida que a história avança, Gordie Lachance, inicialmente uma figura secundária, emerge como um personagem central na interpretação de Wil Wheaton, que também é o narrador da história.

Fica evidente que Gordie personifica o alter ego de King: um garoto introspectivo e complexo, enfrentando os desafios da transição da infância para a adolescência, lidando com a rejeição do pai, interpretado por Marshall Bell, enquanto encontra alívio em sua habilidade de contar histórias e na memória do irmão Denny, vivido por John Cusack, para suportar a passagem de mais um dia. Durante um verão de 1959, em uma Portland ainda mais isolada do que a de hoje, o rumor de um cadáver escondido em uma floresta distante se espalha pela cidade. Esse corpo pertence a Ray Brower, um jovem cuja trajetória se entrelaça de maneira inquietante com a de Gordie.

O filme atinge seu auge após a icônica cena da travessia sobre os trilhos ferroviários sobre o rio Willamette, onde Chris, o líder do grupo; Gordie; Vern, interpretado por Jerry O’Connell; e Teddy, vivido por Corey Feldman, têm um encontro adiado com a morte (ainda que Gordie e o rechonchudo Vern não escapem de um susto quase fatal). Reiner traduz com precisão as complexas metáforas de King — crianças problemáticas fascinadas pela morte, da qual fogem à primeira oportunidade; amizades que atuam como âncoras, evitando que qualquer um se perca; os trilhos simbolizando a jornada da vida — e as combina com o humor leve e natural dos quatro amigos. No entanto, o desfecho traz uma revelação contundente: quem de fato é Ray Brower e o destino trágico que o aguardava. Pouco antes, Gordie/King já havia exposto de maneira clara seus sentimentos em relação a si mesmo, ao pai, e ao irmão de quem foi separado de forma irreversível.

“Conta Comigo” é um retrato magistral das experiências humanas e das inevitáveis e dolorosas transformações que acompanham o processo de amadurecimento, muito antes de começarmos a enfrentar os desafios cada vez mais duros que a vida nos impõe. Todos nós carregamos um pouco de Gordie Lachance, até o momento em que o Stephen King escondido dentro de nós decide se manifestar. Esse é o instante decisivo em que somos obrigados a virar a chave e enfrentar a realidade do crescimento.


Filme: Conta Comigo
Direção: Rob Reiner
Ano: 1986
Gêneros: Aventura/Drama
Nota: 9/10