Relações são sempre difíceis. Filhas do mesmo pai, que não conheciam, e estranhas entre si, as protagonistas de “Irmãs de Sorte”, vivem um turbilhão de sentimentos enquanto tentam achar a solução mais cômoda para um grande dilema. Honrando o que já se tornou um postulado do cinema argentino quanto a produções esmeradas que dão voz a histórias plurais contadas por um elenco irretocável, Fabiana Tiscornia só precisa de 82 minutos para reunir numa comédia temperada com drama suave uma sequência de desencontros existenciais iniciados há pouco mais de duas décadas que, sem nenhuma explicação lógica, acabam por convergir. O roteiro de Mariano Veradeixa Leticia Siciliani e Sofía Morandi, as intérpretes de Ángela e Jésica, a Jesi, livres para alguns cacos — embora nada falte ou sobre no texto —, e já nas primeiras cenas é impossível não se render à química das duas.
Filhos crescem e não têm vontade alguma de renunciar a seu quinhão de mundo; pais por sua vez sentem-se perdidos em meio à cornucópia de transformações que interferem na sua própria maneira de levar o que lhes resta de vida, e esse compasso de uma maneira ou de outra, cedo ou tarde, deságua num caos de proporções inéditas e desafiadoras, cuja solução talvez nunca se revele. Ángela e a irmã caçula não tiveram a chance de desfrutar da convivência, um certo Ernesto Di Pace, que agora veem frio na maca de um necrotério. Elas sequer podem reconhecer o corpo, já que não o viam há pelo menos quinze anos, no caso de mais velha — Jesi, nem isso; foi obrigada a, junto com a mãe, uma instrutora de ioga, a pelejar na Justiça para que Di Pace lhe desse o nome. Depois do velório, ao qual comparecem políticos e personalidades de toda a Argentina, elas sabem pela secretária do finado pai que ele deixou um luxuoso apartamento em Puerto Madero, bairro nobre de Buenos Aires. Pano longo.
A diretora conta que Di Pace era o “facilitador” num esquema de pagamento de propina a autoridades. A partir desse ponto, o filme envereda por um leve thriller, em que Ángela e Jesi primeiro zanzam por restaurantes caros e lojas de grifes, gastando o dinheiro encontrado no palacete do pai (mas que não lhe pertence), e depois fugindo de gângsteres de todo o país, incrédulos com o atrevimento leviano das duas. Siciliani e Morandi se revezam no andamento desta genuína iluminação sobre o querer e, em especial, o não querer do homem, cuja sina é tentar equilibrar-se entre seus desastrados sonhos e o muito-pouco-quase-nada que de fato pode realizar por si mesmo, e, em sendo assim, ainda menos pode fazer por quem o rodeia. Uma especialidade de nossos irmãos ao sul deste subcontinente.
Filme: Irmãs de Sorte
Direção: Fabiana Tiscornia
Ano: 2024
Gêneros: Drama/Comédia
Nota: 8/10