Os irmãos Noel e Liam Gallagher sacudiram as páginas de sites e perfis de redes sociais ao anunciar o retorno do grupo Oasis para shows no próximo ano. De imediato, surgiu o debate se a volta seria ou não mais um golpe dos caras mais chatos do rock inglês. Os memes abundaram na internet. Tão logo começou a discussão, me lembrei da observação do crítico Terry Eagleton: “Nos velhos tempos, o rock era uma distração que afastava você dos estudos; agora pode bem ser o que você esteja estudando”.
O rock é levado muito a sério nos últimos tempos. Um dos indícios é a repercussão dos livros do pensador Mark Fisher, que se matou em 2017, aos 48 anos de idade. Seus livros começaram a sair no Brasil em 2020 e inovam ao usar a música pop inglesa para construir interpretações da globalização, das mudanças tecnológicas e de nada menos que o futuro da humanidade. As obras têm títulos provocativos, como “Realismo capitalista — é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”.
Uma das ideias de Fisher não é tão original assim, porém caiu bem para descrever os anos recentes (sobretudo os da pandemia de Covid) e ajudar a entender “qual é” dos irmãos do Oasis. Vou fazer o exercício de juntar as duas pontas, bem no espírito do autor que, como metade da torcida do Manchester United e do Arsenal, achava os Gallagher insuportáveis. Segundo Fisher, o que vivemos é o “lento cancelamento do futuro”. Acabou a ideia de progresso, há pouca expectativa de que amanhã será melhor que hoje ou ontem.
No livro “Fantasmas da Minha Vida”, Mark Fisher diz: “O lento cancelamento futuro foi acompanhado por uma deflação de expectativas. São poucos os que acreditam que no próximo ano um disco tão bom quanto ‘Funhouse’, dos Stooges, ou ‘There’s a Riot Goin’ On’, de Sly Stone, será lançado. Menos ainda são os que esperam uma ruptura como a provocada pelos Beatles ou pela música disco. A sensação de estar atrasado de viver após os anos dourados é tão onipresente quanto repudiada”.
Fantasmas do rock
O segredo do Oasis foi justamente virar os olhos e ouvidos para o passado na década de 1990 e cancelar o futuro. Mas não se trata de fazer uma mera cópia do que veio antes. Os irmãos Gallagher funcionam como a inteligência artificial, um ChatGPT, para capturar sons. Isso tem nome na discussão estética: pastiche. A intenção não é copiar, é sim reproduzir “como se fosse” igual. Imaginemos um Paul McCartney ou um John Lennon que tenha escutado o glam rock e um punk. Eis o Oasis em sua essência.
Jamais foi por acaso que muita gente notou o quanto as músicas do Oasis soam parecidas com Beatles e Rolling Stones. Eu diria algo mais: os Gallagher buscaram fazer o que fariam os Beatles e os Stones caso fossem jovens em 1994. Ao escutar as versões do Oasis para “I am the walrus” e “Street fightning men”, nos perguntamos se as gravações originais não seriam as verdadeiras cópias. É como se fossem Noel e Liam tivessem feito um backup de Paul, John, Mick Jagger e Keith Richard.
Com as ressalvas necessárias (e o respeito devido), o Oasis cria música como se fosse o Pierre Menard, do conto do argentino Jorge Luis Borges. O personagem lê tudo o que Miguel Cervantes leu para escrever um novo Dom Quixote. E o resultado final é um Quixote idêntico ao original, sendo até sutil e inovador. Um certo anacronismo tem seu charme. No caso dos Gallagher, a velharia se atualiza com guitarras hiper-distorcidas, algo que os Beatles tentaram apenas em “Rain” e “Helter Skelter”, salvo engano.
O estranhamento com a música do Oasis remete a outras duas ideias de Fisher: a nostalgia da arte contemporânea e a assombrologia (os fantasmas da nossa cabeça). Os Gallagher passam a sensação de nostálgicos. “A confiança dos artistas atuais em estilos que foram estabelecidos há muito tempo sugere que o agora está nas garras de uma nostalgia formal”, notou Fisher, que notou um abafamento das verdadeiras novidades da década de 1990 com a música eletrônica de grupos ingleses.
“O britpop [o rock inglês dos anos 1990] era caracterizado pela retomada de elementos musicais considerados mais autênticos das décadas de 1960 e 1970 — um rock centrado numa experiência masculina que celebrava tanto a ironia ‘esperta’ do Blur quanto a cultura alcoólica do Oasis (misturando partes iguais de Beatles, do glam rock de arena do Slade), a new wave com consciência de classe do Pulp, se tornando um dos símbolos da Inglaterra ‘cool’ do novo trabalhismo do governo Tony Blair”, acrescentou Fisher.
Nova Inglaterra
O culto passado pareceu muito atual nos anos 1990 para uma Nova Inglaterra, que teve o renascimento do Partido Trabalhista e a explosão do fenômeno Harry Potter a partir de 1998. Destruídos pelo neoliberalismo de Margaret Thatcher, os ingleses só conseguiam imaginar a redenção no passado supostamente glorioso. E nada mais poderoso no mundo que a galeria que reúne Beatles, Stones, Kinks, Pink Floyd, Black Sabbath, Led Zepellin, David Bowie, Clash, Sex Pistols, Cure, Joy Division, New Order.
Na ruminação do passado, surge a “assombrologia” de Fisher. O ouvinte de rock nota as palavras dos Beatles brotando no meio das músicas do Oasis. Uma canção termina com a introdução de “Dear prudence”, cantada por John Lennon no famoso “Álbum Branco” da banda. É como se os Gallagher vivessem um luto de uma época e tiram sua energia criativa da remontagem do que se fez no rock. A novidade vem da energia que tem origem clara no punk de 1977, com sua percepção de um mundo distorcido.
Hoje, os jogadores e os torcedores do Manchester City cantam a música “Wonderwall” do Oasis para celebrar vitórias e motivar a equipe de futebol. Virou hino informal do clube que, no sintoma do tempo atual, é controlado por xeiques árabes. Isso tudo numa Inglaterra que rompeu com a União Europeia em 2016. O mesmo país que agora chamou o Partido Trabalhista para consertar o estrago provocado pelos conservadores nos últimos anos e seu cancelamento acelerado do futuro.