Há filmes que despertam os incômodos atávicos da condição humana. Para algumas pessoas, a vida se assemelha mesmo a um jogo, com uma legião de inimigos a perseguir o candidato a salvador da humanidade — que depois de algum tempo, nem se importa mais. Pouca gente no cinema entende tanto de exorcizar demônios como Lee Daniels, e em “A Libertação” o diretor volta a desafiar o bom gosto com o nobre propósito de ver até que ponto suportamos nossas próprias neuroses. Seu roteiro, coassinado por David Coggeshall e Elijah Bynum, investiga o que pode haver de verdade e fantasia na história de Latoya Ammons, que em 2011 ganhou os noticiários de toda a América com alegações de que espíritos malignos haviam se instalado em sua casa. Um assistente social, um médico, um capitão de polícia e um padre atestaram que algo de sobrenatural acontecia mesmo sob o teto em que Ammons morava com a mãe doente e os três filhos, mas Daniels não se rende tão fácil.
À medida que se vive, mais se cristaliza em nós a ideia de que a vida é um curioso desafio, em que vencida cada etapa, impõe-se nós a seguinte, e mais outra, e outra ainda, até que essas mil situações que mais parecem testes a nossa resistência, se tornem para nós a fonte mesma do que podemos ter de mais genuíno, a capacidade de suportar a incerteza fundamental que cobre tudo, desfaz dos planos mais ordinários com que nos atrevemos a sonhar, atropela com brutal violência o que julgamos precioso e sobrepuja-nos sua natureza sobranceira, de pesada sombra que eclipsa qualquer luz, do funesto que macula de castigo hediondo a salvação possível e aturde-nos mesmo no que temos de mais indevassável, que pensávamos só nosso, nos detalhes de nós mesmos que julgávamos conhecer tão bem, reafirmando estar sempre muito certa do domínio que exerce sobre todas as criaturas.
Em “A Libertação”, Latoya Ammons vira Ebony, uma mulher que luta para esconder do mundo seus segredos. O espantoso desempenho de Andra Day ajuda o espectador a absorver um enredo assumidamente intrincado, cheio dos meandros em que o diretor entra aos poucos. Sentimos pena dela, especialmente depois que Alberta, a mãe interpretada por Glenn Close, vai viver com a filha enquanto convalesce de um câncer. Essa dicotomia entre o bem possível e o mal testando os limites de alguém já bastante vulnerável é, sem dúvidas, o que segura a história. Daniels sabe onde nos aperta o sapato.
Filme: A Libertação
Direção: Lee Daniels
Ano: 2024
Gêneros: Terror/Suspense
Nota: 8/10