É isso mesmo. Tapas na cara. Bofetadas estaladas e sem pudor que esfolam a carne das bochechas indefesas.
Não tem jeito, não tem saída. Quando se acha que está tudo bem, ela surge, intrépida, pra provar que “tudo bem” é só uma invenção que dissimula nossas falhas e temores. Se, num momento inocente, o caminho parece reto, é porque ela está na caixa de Pandora engenhando o próximo baile.
Tapas na cara são excelentes para eliminar certezas. O indivíduo está lá, todo convicto de sua estrada, gestando em si um bocado de verdades… Começa a se achar interessante; tocar um projetinho tímido; colocar um pé atrás do outro, numa frágil linha reta… Incauto! O cenário da segurança é o preferido da hospedeira. É porrada para todo lado.
Basta que se descuide das palavras, dos hormônios ou dos sonhos (ou de qualquer das fraquezas humanas). Dar a qualquer desses um instante de autonomia é a certeza de plantar o golpe certeiro. Falar demais é porrada certa. Falar de menos também. Obedecer ao corpo — tão cru, tão vil — é construir o próprio abismo. Dar vazão aos sonhos — esses tolos incansáveis — é subir bem alto só para mirar o vale de cima. O segredo é querer nada para ser livre.
As bofetadas vêm sob formas diversas: um amigo que decide liberar os cachorros, um familiar que cisma de puxar o tapete, uma oportunidade que dá as caras e se recolhe após causar frisson. Pode ser um livro cheio de carapuças prontinhas para ser usadas, ou uma situação embaraçosa que arranca todo mundo da inércia de uma só vez. Pode, ainda, ser a sutil ausência da palavra, aquela plácida nudez carregada de fel, que encontra na pele da cara uma morada incompetente.
Só que a gente, essa manada de bobocas, tem mania de mirar o queixo para o céu. E se levanta, e cospe poeira, e se irrita, e cai do precipício. Mas lá se manda o queixo para o céu de novo. Vai entender. A vida é tapa atrás de tapa. Mas a gente é cara de ferro e um dia entende que muito buscamos porque nada somos.