O fascínio duradouro em torno das organizações criminosas se deve à habilidade de seus membros em transformar seus próprios feitos em lendas, um talento que encontra eco na mídia, na academia, entre políticos e até no Judiciário. Esses setores frequentemente fazem uma distinção entre o que deve ser revelado e o que deve permanecer oculto, alimentando uma batalha de narrativas que ressoa com a complexidade de nosso tempo. “Donnie Brasco” desafia essa glamourização, destacando a possibilidade, ainda que distante, de que o crime organizado um dia seja devidamente confrontado.
Nessa luta, policiais com senso de dever — sem abdicar da paixão — veem como questão de honra pessoal o combate aos chefões dos narcocartéis, das quadrilhas que oferecem serviços que o Estado não supre e das gangues que aterrorizam comerciantes. Mike Newell, com sua versatilidade, explora os mecanismos internos da máfia americana, equilibrando elementos de ficção com uma forte aderência à realidade. Ele parte da adaptação de Paul Attanasio, que por sua vez traduz o livro homônimo de Joseph Dominick Pistone, publicado em 1978, e busca decifrar a vida de um agente do FBI cuja entrega à missão resultou em uma transformação profunda.
Newell nos conduz ao submundo do crime com imagens em preto e branco, iluminadas pela trilha sonora de Patrick Doyle, até que a câmera se fixa em uma mesa de bar onde homens de caráter duvidoso debatem sobre a superioridade do Lincoln em relação ao Cadillac. O cenário é novembro de 1978, um período confuso na história americana, marcado por falsos líderes e tragédias coletivas, e a conversa termina quando alguém menciona que a Mercedes é mais bonita e segura. No balcão, Donnie Brasco, codinome de Pistone, escuta tudo com atenção, consciente das identidades à sua volta, aguardando o momento certo para agir. Johnny Depp, com sua capacidade de adaptação, encarna a urgência de seu personagem, transitando de predador a presa diante de Benjamin Ruggiero, o chefe local. Lefty, como é conhecido, apresenta um anel com uma pedra preciosa que, na verdade, é falsa — uma revelação feita por Brasco com frieza.
O incidente os leva a um clube em Staten Island, onde Lefty, pela primeira vez, percebe ter sido enganado, agora precisando da ajuda de seu novo colega para restaurar sua honra. No entanto, Lefty é um homem falido, como Al Pacino demonstra magistralmente com sua atuação carregada, expondo a fragilidade de seu personagem. Ao longo do filme, Lefty se transforma de Michael Corleone em Travis Bickle, cada vez mais encurralado, e Newell aproveita ao máximo essa trajetória, desconstruindo a figura outrora imponente de seu antagonista, até que sintamos por ele uma compaixão quase insuportável. Lefty parece estar morrendo de uma doença, um de seus filhos sucumbe repetidamente às drogas, e Dominick Napolitano, o verdadeiro chefe, interpretado por Michael Madsen, não perde a oportunidade de relembrá-lo de sua insignificância.
Nessas cenas, Newell delineia com clareza o propósito de seu filme. Um melodrama involuntário que explora as fragilidades do típico fora da lei americano, “Donnie Brasco” supera suas pretensões iniciais ao unir a coragem de Joe Pistone à fragilidade latente de Benjamin Ruggiero, resultando em uma amizade que resiste aos inúmeros desafios compartilhados. A separação inevitável, sugerida no desfecho, é o golpe que impacta o público, mesmo sabendo que Lefty pagará por seus crimes e Pistone retornará ao mundo dos vivos — ou quase isso. As provas coletadas por Donnie Brasco levaram a mais de duzentos processos e a condenações de mais de uma centena de indivíduos. Desde então, Pistone vive sob uma nova identidade, em um local desconhecido, e sua cabeça ainda tem um preço de quinhentos mil dólares no mercado negro controlado por uma poderosa organização criminosa que continua a operar, tanto em atividades ilícitas quanto legítimas, por todo o território dos Estados Unidos.
Filme: Donnie Brasco
Direção: Mike Newell
Ano: 1997
Gêneros: Crime/Drama
Nota: 9/10