O filme com Keanu Reeves que ficou 327 dias no Top 10 da Netflix de 93 países Divulgação / Summit Entertainment

O filme com Keanu Reeves que ficou 327 dias no Top 10 da Netflix de 93 países

Se imaginarmos o mundo como um vasto campo onde só florescessem a bondade, a beleza e a justiça, ou mesmo como um espaço cada vez mais restrito em que todos estivessem cientes de seus deveres e os cumprissem sem esperar nada em troca, figuras como Jonathan “John” Wick dificilmente seriam tão predominantes. O assassino de aluguel, vivido por Keanu Reeves, se tornou a alma de uma das franquias mais lucrativas já criadas no cinema, e “John Wick 3: Parabellum” talvez representasse a chance que o diretor Chad Stahelski, também responsável pelos outros três filmes da série, aguardava para aprofundar a corrosão moral de seu anti-herói, recorrendo a artifícios estéticos que capturam até os mais distraídos.

A fotografia de Dan Laustsen, que ora acentua o brilho dos objetos em cena, ora mergulha em tons sombrios, refletindo tanto a misantropia crônica de Wick quanto a frieza desumana de Nova York, dialoga com o roteiro de Chris Collins, Shay Hatten e Derek Kolstad. O texto busca sempre justificar as ações do justiceiro torto num mundo consumido pelo caos. Wick, paradoxalmente, se torna uma figura de paz possível num ambiente regido pela arbitrariedade do próprio sistema.

Em uma das cenas, Wick chega à Biblioteca Pública de Nova York em busca de um livro de Aleksandr Nikoláyevich Afanásiev, um contista folclórico russo. No entanto, a próxima sequência revela que ele não tem o menor interesse nas histórias eslavas do período czarista. Como o criminoso mais procurado do país, Wick está a vinte minutos de ser excomungado, o que autoriza qualquer um a capturá-lo, vivo ou morto, por uma recompensa de catorze milhões de dólares.

Dentro do livro de Afanásiev, Wick encontra um amuleto que serve como seu escudo e passaporte para o submundo mais impenetrável, onde ele tenta escapar quando o cheiro de carne queimada começa a tomar o ar. Claro que nada é simples, e Stahelski, um ex-dublê famoso por ter substituído Brandon Lee em “O Corvo” (1994), sabe exatamente o que o público espera de seu filme e, obviamente, de seu protagonista.

Já na abertura, Reeves supera todas as expectativas em uma coreografia frenética, usando o livro como escudo contra um ataque letal, o que resulta em sangue manchando tanto o livro quanto sua camisa branca e seu terno antes impecável. Esses momentos intensos capturam a atenção do público de imediato, mas detalhes quase imperceptíveis, como Wick retornando o volume à estante, oferecem uma camada extra de apreciação para os amantes do cinema refinado.

No icônico Hotel Continental, refúgio seguro para assassinos, Charon, o leal ajudante vivido por Lance Reddick, cuida do pitbull de Wick enquanto ele inicia uma jornada que o levará a reencontrar uma antiga mentora, interpretada por Anjelica Huston, em outra referência à Rússia. Ela agora divide sua atuação no crime organizado com a direção de uma companhia de balé, e paga caro por sua ligação com o ex-pupilo, embora nunca pudesse prever seu retorno.

Personagens secundários como este são, por vezes, uma faca de dois gumes, ora fortalecendo a trama, ora prejudicando-a de forma irremediável. É o caso de Sofia, uma ex-assassina interpretada por Halle Berry, em uma passagem que poderia ser dispensada, ao lado de seus cães treinados. Wick vai ao encontro dela no Marrocos, mas a perseguição implacável de figuras como O Adjudicador, uma justiceira andrógina interpretada por Asia Kate Dillon, continua.

Rigoroso até nos momentos mais sombrios, “Parabellum” evoca o melhor dos westerns de Clint Eastwood, como “Por um Punhado de Dólares” (1964), de Sergio Leone, ou “Os Imperdoáveis” (1992), do próprio Eastwood, mas transposto para um cenário quase pós-apocalíptico, onde talvez já estejamos. O paraíso ainda está distante para esse Lúcifer nova-iorquino exausto de tantas batalhas, como se vê em “John Wick 4: Baba Yaga” (2023), e mesmo no que é apontado como o capítulo final da saga, Stahelski parece não querer soltar o fio da narrativa tão cedo. É provável que a franquia ainda tenha fôlego, o que nem sempre se revela uma escolha sábia.


Filme: John Wick 3: Parabellum
Direção: Chad Stahelski
Ano: 2019
Gêneros: Ação/Suspense
Nota: 9/10