Suspense com Honor Swinton Byrne é o melhor filme que estreou este mês na Netflix Divulgação / A24

Suspense com Honor Swinton Byrne é o melhor filme que estreou este mês na Netflix

“O Souvenir: Parte 2” parece um livro de memórias. Estão ali conquistas, fracassos, risos, choros, prazeres, dores, tudo o que uma garota entende como seus momentos mais grandiosos, as lembranças mais plenas de sentido, as que se impõem sobre o passar dos anos, resistem à bruma do tempo e ficam para sempre — e isso, por óbvio, não quer dizer que não firam. De quando em quando, é preciso abrir esse baú de ossos e desenterrar uma ou outra recordação, que não raro surpreende pela força que ainda tem. É justamente o tempo o que faz com que aquilo que vivemos passadas algumas décadas continue a doer, porque nos damos conta de que não é mais possível fazer nada. Só rir, ou chorar. Uma das diretoras mais sensatas do cinema contemporâneo, Joanna Hogg segue contando a saga de Julie Hart, uma graduanda em artes cinematográficas às voltas com a conclusão de seu primeiro filme ao passo que ainda tenta digerir a morte do namorado, e, aos poucos, um e outro evento se amalgamam e se complementam, levando-a a autodescobertas que só são mesmo possíveis nas circunstâncias mais acerbas. A diretora-roteirista quase não volta ao longa de dois anos antes, o que a deixa livre para acrescentar os elementos que fazem desta uma história vibrante, capaz de envolver aqueles que passaram batidos pelo primeiro longa.

Misturar melodrama, revelações que parecem a ponto de subir à superfície de círculos que só se mantêm graças ao mistério e uma dose generosa de sexo — filmado da maneira mais elegante, mas sexo assim mesmo — pode resultar num todo de gosto duvidoso, além de pouco coeso, quase capenga, como uma máquina feita de peças de tamanhos diferentes. No entanto, filmes realizados sob esse padrão, se é que se trata de um padrão, podem apresentar qualidades um tanto interessantes, a despeito, claro, da originalidade. Histórias que encerram tamanho pluralismo tendem a frustrar muito menos a audiência, que não tem a mais pálida ideia sobre o que esperar do enredo, assume essa impressão e faz dela o pretexto para seguir firme até o desfecho. A depender que como cada argumento seja disposto ao longo da narrativa, esse caos dramático torna-se mais e mais orgânico, e caso houvesse algum mal-estar quanto a absorver a essência um pouco mais sofisticada, esse sentimento ter-se-ia dissipado logo à primeira sequência, muito longe do convencional. Respeitar os ciclos da vida, a natureza única de certas relações, aceitar que em cada uma há mistérios que talvez nunca se revelem, desejos confusos, ambições megalômanas, é um passo firme, decisivo, no rumo da felicidade, que surge para cada um do jeito que só ela entende. Em “O Souvenir: Parte 2”, a Julie Hart de Honor Byrne responde sozinha pelo encanto que Hogg tenta transmitir, e a beleza das tomadas, com flores e ambientes portentosos ao som de “Moonlight Serenade” (1944), da Glenn Miller Orchestra, fixam na retina a promessa de felicidade proustiana. Como o filme de Julie, uma graça metalinguística que só enriquece o que já está posto.


Filme: O Souvenir: Parte 2
Direção: Joanna Hogg
Ano: 2021
Gêneros: Romance/Drama
Nota: 9/10