Último dia na Netflix: o filme que superou as bilheterias de Harry Potter na semana de estreia Divulgação / We Distribution

Último dia na Netflix: o filme que superou as bilheterias de Harry Potter na semana de estreia

Alguns filmes têm o poder de nos confrontar com as verdades mais desconfortáveis da natureza humana, evocando reflexões que atravessam o tempo e as convenções. “Dragão”, dirigido por Peter Ho-Sun Chan, é uma dessas obras que, através da beleza e da quietude de uma China rural aparentemente suspensa no início do século XX, leva o espectador a uma jornada não apenas histórica, mas profundamente introspectiva. O filme provoca uma análise das ideologias que, por mais perversas que sejam, se estabelecem de maneira insidiosa como novos paradigmas globais.

No coração dessa narrativa está um tempo em que a honra de um homem era um tesouro inegociável, e qualquer sombra de dúvida sobre sua integridade era intolerável. A partir desse princípio, “Dragão” desenvolve uma complexa trama de equívocos que conduzem a crimes e, por extensão, a emoções conflitantes e devastadoras — um terreno fértil para o cinema oriental. Aubrey Lam, a roteirista, recorre aos elementos clássicos do “wuxia”, o venerado gênero literário chinês, para construir a lenda de um herói cuja ascensão se dá por um motivo aparentemente insignificante, mas profundamente simbólico.

Situado em 1917, em um isolado vilarejo de Yunnan, no sudoeste da China, o filme nos apresenta uma família que desperta para mais um dia de trabalho em um mundo muito distante da riqueza que, cem anos depois, tornaria a China uma superpotência mundial. Peter Ho-Sun Chan, com uma direção meticulosa, revela as camadas de Liu Jinxi, um camponês de modos polidos, mas carregado de segredos, interpretado por Donnie Yen, cuja atuação transita entre o contido e o explosivo. A China daquela época, separada por um século de seu atual progresso, era um lugar brutal e implacável, repleto de saqueadores que agiam com ferocidade. Em uma das cenas mais memoráveis do filme, Chan retrata essa violência com uma crueza quase poética, onde golpes de katana são precisos o suficiente para desmembrar e deixar marcas indeléveis.

A possibilidade de que Liu seja o último herdeiro da dinastia Qing, a derradeira casa imperial da China, adiciona uma camada intrigante à narrativa. Os Qing, uma minoria nômade proveniente da Manchúria, governaram a China por 268 anos, de 1644 a 1912, e sua ascensão ao poder não foi menos dramática. Com a conquista de Pequim, os Qing consolidaram seu domínio, marcando seu governo com feitos audaciosos, como persuadir o imperador Shunzhi a expandir suas campanhas militares contra reinos vizinhos, subjugando-os com sucesso.

Entretanto, essa expansão encontrou um obstáculo formidável no rei Injo, vivido por Park Hae-Il, o 16º monarca da dinastia Joseon da Coreia. Chan habilmente semeia dúvidas no espectador, sugerindo que Liu talvez esteja motivado por algo tão simples e ao mesmo tempo tão profundo quanto o desejo de proteger sua esposa, Ayu, interpretada por Tang Wei, e seus dois filhos pequenos, cuja vida tranquila se resume à fabricação de papel. Essa visão é compartilhada por todos na aldeia, exceto por Xu Baijiu, o perspicaz investigador vivido por Takeshi Kaneshiro. Nesse ponto, “Dragão” abraça com intensidade o gênero thriller, revelando a conexão de Liu com os 72 Demônios, uma facção que mistura misticismo e vingança, e que, como uma sombra ameaçadora, paira sobre Yunnan — até culminar em uma reviravolta que redefine toda a história.


Filme: Dragão
Direção: Peter Ho-Sun Chan
Ano: 2011
Gêneros: Ação/Drama
Nota: 8/10