Quando o roteiro é uma obra de arte: o filme mais subestimado de Michelle Pfeiffer está na Netflix Divulgação / Sony Pictures Classics

Quando o roteiro é uma obra de arte: o filme mais subestimado de Michelle Pfeiffer está na Netflix

Jane Austen (1775-1812) talvez tenha sido a desbravadora de um prolífico filão literário: a degenerescência das elites. Já padecendo dos sintomas do mal de Addison, doença autoimune a respeito da qual nada se sabia duzentos anos atrás e que viria a matá-la em 18 de julho de 1817, aos 42 anos, a britânica disse em seus romances verdades urgentes (e um tanto fesceninas) a respeito da sociedade de seu tempo, algo que fazia como ninguém. Todo filme como “Saída à Francesa” tem de pagar tributo a “Razão e Sensibilidade” (1811), “Orgulho e Preconceito” (1813), “Emma” (1815) e “Persuasão” (1817), a trilogia de Austen sobre garotas levianas, amores que sobrepujam convenções e aristocratas perdidos em sonhos de grandeza que feneceram.

Nessa última categoria entra Frances Price, a grã-fina arruinada de Michelle Pfeiffer, amolando facas numa cozinha às escuras para tentar esquecer seu novo status e, se possível, achar um jeito de voltar ao topo. O canadense Patrick DeWitt adapta “French Exit: Une Tragédie de Moeurs” (“saída francesa: uma tragédia de moral”, literalmente), seu divertido tratado austeniano sobre a decadência de uma família depois de uma morte que chega sem prévio aviso, e o diretor Azazel Jacobs sublinha as reações menos óbvias de Frances, uma mulher que precisa muito conhecer-se a si mesma. Sem a ajuda de artifícios luxuosos.

Dinheiro pode ser um problema, especialmente quando ocupa tanto espaço. O capitalismo é um sistema cheio de particularidades. Da mesma forma que oferece a chance de ascensão social a indivíduos alijados pela própria vida das mínimas condições de desenvolvimento, sem um trabalho digno ou instrução formal que os ajude a consegui-lo, morando em choupanas de palafita ou de pau a pique sem abastecimento de água tratada, vendo o esgoto correr de porta em porta levando as moléstias que adoecem e matam seus filhos como há mais de quinhentos anos, o capitalismo, porque conduzido de maneira cruelmente equivocada, não manifesta por essas pessoas a menor compaixão, perpetuando um ciclo de miséria e abandono que não interessa a ninguém.

Frances e o filho, Malcolm, nunca viveram nada semelhante, mas assim mesmo ela se tem pela mais desgraça das criaturas quando fica sabendo que terá de adequar-se a uma rotina que, para quem sempre teve de tudo, tem um ar verdadeiramente sombrio. Pfeiffer exacerba o cinismo de sua personagem quando Frances vai buscar Malcolm no internato em que o garoto passara boa parte da vida, como se fosse a mãe mais devotada do mundo, e aos poucos Lucas Hedges rouba a cena com uma atuação que marca justamente aquilo que Jacobs deixa nas entrelinhas.  

A mudança de Nova York para Paris, razão do trocadilho que empresta nome ao longa, de navio, só acontece graças a Joan, uma amiga com quem toma bloody marys antes da despedida. Frances e Malcolm vão para o apartamento dessa alma caridosa, gesto que, como se vai ver, não é tão desinteressado assim. No desfecho, pontuado por uma comicidade refrescante envolvendo Frances e sua modo bastante exótica de gerir o novo lar, Pfeiffer divide os lances mais improváveis com Susan Coyne, corroborando a sensação inicial de que este é um filme sobre afetos. E nesses assuntos dinheiro só atrapalha.


Filme: Saída à Francesa
Direção: Azazel Jacobs
Ano: 2020
Gêneros: Comédia/Drama 
Nota: 8/10