Baseado em Stephen King, o filme da Netflix que Tarantino considera um dos melhores suspenses do século 21 Divulgação / Netflix

Baseado em Stephen King, o filme da Netflix que Tarantino considera um dos melhores suspenses do século 21

Enfrentar crises é uma realidade inevitável em qualquer relacionamento. Quando a tensão se instala, muitos casais buscam soluções que, embora pareçam simples, são marcadas pela tentativa desesperada de resgatar o que se esvai lentamente. Não é incomum vermos parceiros em dificuldades apostando em saídas espontâneas, como se a nostalgia de dias despreocupados pudesse reverter o desgaste acumulado.

Contudo, tais tentativas raramente tocam o cerne do problema. Geralmente, as verdadeiras causas são profundas e complexas, enraizadas em questões que, se não forem enfrentadas com seriedade por ambos, acabam por agravar o distanciamento. Relacionamentos marcados por mágoas latentes se assemelham a uma estrutura corroída por dentro; qualquer solução superficial apenas posterga o inevitável desmoronamento.

Mike Flanagan, ao trazer “Jogo Perigoso” de Stephen King para o cinema, transcende a adaptação convencional, explorando com precisão temas que ressoam para além da narrativa aparente. King, embora muitas vezes associado a histórias de terror explícito, aqui mergulha na psicologia de seus personagens, e Flanagan, conhecido por sua habilidade em construir atmosferas de tensão, utiliza esse material de forma a suscitar uma reflexão intensa sobre a natureza das relações humanas e os horrores pessoais que muitos preferem ignorar.

 Publicado no Brasil em 1992 pela editora Suma, o romance desafia os leitores com uma narrativa introspectiva, onde o fluxo de consciência da protagonista, Jessie, oscila entre o real e o imaginário, sem oferecer respostas fáceis. A escolha de King por um cenário restrito e uma trama que se desenrola quase inteiramente em um único ambiente poderia alienar o público, mas Flanagan transforma essa limitação em um ponto forte, amplificando a claustrofobia emocional e física que define a obra.

O filme começa de forma aparentemente banal, apresentando a rotina do casal que decide fazer uma viagem para reacender a faísca apagada de sua relação. Gerald, o advogado interpretado por Bruce Greenwood, está no centro da trama, como sugere o título original, “Gerald’s Game”. No entanto, é Jessie, vivida por Carla Gugino, quem verdadeiramente carrega a narrativa.

Desde os primeiros minutos, Flanagan usa pequenos detalhes para sugerir a deterioração do relacionamento — uma música que Gerald desliga abruptamente no carro, o silêncio tenso que preenche o espaço entre eles, e o encontro com um pastor alemão perdido, que pressagia os eventos sombrios por vir. A tensão cresce à medida que a viagem se desenrola, e a atmosfera de desconforto é palpável, culminando no confronto final no quarto.

Quando o momento de intimidade planejado por Gerald finalmente ocorre, ele revela-se um erro fatal. A tentativa de retomar o controle sobre a relação, forçando Jessie a participar de um jogo que ela claramente rejeita, precipita uma catástrofe. Gerald sofre um colapso súbito, deixando Jessie acorrentada à cama, vulnerável e sozinha. A narrativa então mergulha em um pesadelo psicológico, onde o passado traumático de Jessie retorna com força devastadora.

Flanagan explora essas memórias através de uma fotografia saturada em tons de vermelho, uma escolha estética que intensifica a sensação de claustrofobia e desespero. Cada flashback revela camadas do sofrimento de Jessie, esclarecendo seu desconforto com as dinâmicas de poder em seu casamento.

O clímax do filme, embora intenso, é seguido por uma resolução que, para alguns, pode parecer um tanto expositiva, mas serve para amarrar as pontas soltas da narrativa e dar ao público um entendimento completo das cicatrizes emocionais de Jessie. Em última análise, Flanagan não apenas adapta, mas reimagina “Jogo Perigoso”, transformando um romance subestimado de King em um estudo profundo sobre medo, poder e sobrevivência. A maestria com que ele constrói essa história não só homenageia a complexidade do material original, mas também eleva a obra a um novo patamar, desafiando o espectador a olhar além do óbvio e confrontar seus próprios demônios internos.


Filme: Jogo Perigoso  
Direção: Mike Flanagan
Ano: 2017
Gêneros: Terror/Thriller
Nota: 8/10