Contar histórias em lugares como o Brasil é promover o encontro entre as formas europeias de narrar e aquelas de negros e indígenas. A dita racionalidade de um escritor francês ou inglês passa pelo filtro do olhar africano ou, para usar um termo da moda, do ameríndio. O desejo de uma razão universal se mistura ao transe local que causa arrepios nos espíritos modernos. Mas, só para lembrar, o Brasil nasceu do projeto de modernidade da Europa, que se expandiu nos últimos cinco pelo mundo afora. Foram pitadas de civilização com altas doses de barbárie.
Prestes a completar 40 anos de sua primeira edição, o romance “Viva o Povo Brasileiro” é um dos grandes estímulos para pensar a relação entre nós e eles, os europeus. Nesse “nós”, incluam-se os que nasceram por aqui. Apesar de sua ambição estética, o livro ainda é um incômodo no campo literário. Leitores e leitoras o transformaram em clássico, mas especialistas têm dificuldade enorme para ler a obra máxima de João Ubaldo Ribeiro. Populismo, narrativa sem forma, essencialista, pós-moderna, culto às identidades velhas: a lista de pontos negativos abunda e constrói um enigma.
A repercussão de “Viva o Povo” se mostra ainda hoje em várias obras artísticas. Ana Maria Gonçalves se apropriou do livro em “Um Defeito de Cor” (2006), ao resgatar personagem Amleto Ferreira em seu romance. Itamar Vieira Júnior deixou alguns rastros da “alminha” criada João Ubaldo na personagem Santa Rita Pescadeira, a narradora da terceira parte do premiadíssimo “Torto Arado” (2019). E no ano passado, André Paes Leme colocou em cartaz a peça musical “Viva o Povo Brasileiro”, com trilha sonora de Chico Cesar e com forte valorização da cultura africana.
O incômodo produzido por João Ubaldo é um livro que narra a (de)formação do país, num período (o atual) em que não se acredita na importância de alguém se considerar brasileiro. Nada mais fora de moda do que o nacionalismo, ainda mais com um título ambivalente e irônica com a saudação “viva” — a tradução para inglês feita pelo próprio autor foi batizada de “Memória invencível”. Trata-se de uma obra da pós-ditadura, para usar outro termo da moda, e que vasculha os delírios de quem construiu o país.
“O segredo da Verdade é o seguinte: não existem fatos, só existem histórias”, alerta a epígrafe do romance, lançado em 1984, o último ano da ditadura militar. A partir desse ponto, a escrita de João Ubaldo faz um mergulho para parodiar estilos e criar versões paralelas de momentos históricos. Vem daí a percepção de uma forma literária fraca, com um narrador em terceira pessoa, tendo altos e baixos da narrativa.
O fio condutor de “Viva o Povo” é a violência pura, ou seja, um nexo que teria estruturado a sociedade brasileira. Os personagens se dividem entre os que de um lado batem, os que apanham de outro e aqueles que resistem como podem. Quem acusou o livro de populista, se queixa da visão benevolente em relação às figuras populares, sempre positivas. São os negros e indígenas que assumem a linha de frente. Aos europeus e suas cópias locais, cabe o papel de devastadores do país, com a chibata na mão.
Riso de Rabelais
O livro está organizado em 53 datas ou capítulos, que vão do ano de 1647 a 1971. A forma narrativa é o riso para desmontar os mitos e emblemas da nação — afinal, o romance sai no final da ditadura militar que combinou a cafonice dos desfiles públicos, as torturas nos porões e o desenvolvimento econômico de terra arrasada ao estilo dos bandeirantes do passado. O humor surge para rebaixar o que se pretende sério e heroico na Ilha de Itaparica, na Bahia, o microcosmo do Brasil no romance. A ilha utópica (ou distópica) sintetiza questões nacionais, desde os encontros dos europeus com os indígenas.
A escrita de Ubaldo é o que podemos chamar de “extroversão rabelaisiana”, pelo uso que faz da tradição satírica do francês François Rabelais e seus personagens Gargântua e Pantagruel. Trata-se de um contraponto à visão saudosista e positiva de Gilberto Freyre, em “Casa Grande & Senzala”, que definiu assim sua obra: “O estudo da história íntima de um povo tem alguma cousa de introspecção proustiana. (…) É um passado que se estuda tocando os nervos; um passado que emenda com a vida de cada um; uma aventura de sensibilidade, não apenas um esforço de pesquisa de arquivos”.
João Ubaldo recorre ao modelo modernista de Oswald de Andrade, assim como também fizeram seus contemporâneos baianos Glauber Rocha e Caetano Veloso. São os três filhos espirituais do autor de “Serafim Ponte Grande” e “O Rei da Vela”. A essa tradição se junta o tropicalismo dos anos 1960, que resgatou o modernismo, adicionou o “romantismo revolucionário” e viveu o conflito de modernização torta do Brasil. “Viva o Povo” seria, podemos dizer, a última manifestação da visão nacional-popular da cultura brasileira. Uma obra tardia, mas necessária para o momento de transição democrática.
A preparação de “Viva o Povo” foi o livro “Vencecavalo e o Outro Povo”, publicado por João Ubaldo Ribeiro em 1974. A obra é um exercício de estilo, vista pelos olhos de hoje, e traz cinco histórias satíricas de personagens que encarnavam o lado ridículo da ditadura e de quem a comandava. Figuras que gostavam de se apresentar como imaculadas, sem suas roupas engomadas, porém carregavam o que existia de mais baixo e violento da sociedade brasileira na época. O autor preparou assim o estilo grotesco, à moda de Rabelais, que vai desembocar no grande romance de 1984.
Três camadas
Na estrutura de “Viva o Povo”, é possível separar os personagens em três grupos para se compreender a narrativa. O primeiro reúne os senhores grotescos: Perilo Ambrósio (o barão de Pirapauma), Amleto Ferreira e o cônego Dom Francisco Manoel. Trata-se de uma elite imperial. Um cultiva o espalhafato, a desfaçatez; outro prefere a dissimulação; mas todos se igualam na defesa de coisas indefensáveis como a escravidão e as ideais liberais. Perilo tem a fome pantagruélica e vai explodir de tanto devorar tudo que lhe passa pela frente, da comida às pessoas.
Resgatado por Ana Maria Gonçalves em “Um Defeito de Cor”, o personagem Amleto Ferreira é o sujeito filho de brancos com negros que esconde a origem da família. O nome anglófono virou uma solução para embranquecer a história pessoal. Ele trabalha como guarda-livros, ou seja, faz a contabilidade dos negócios de Perilo Ambrósio. Em 1971, seus descendentes serão, não por acaso, banqueiros no Rio de Janeiro. Naquele Brasil que nascia, quem mandava no pedaço tinha de criar a aparência de liberalismo, mas o que importava mesmo era ser dono de escravo.
O cônego funciona ainda mais no papel de racionalizar as coisas abomináveis. Em tom de sermões (uma paródia do Padre Vieira), suas palavras expõem aspectos mais baixos de uma sociedade criada pelos modernos instrumentos coloniais da época. Se não existe uma organização social decente no século 19, restam os discursos de personagens que levam os leitores e as leitoras às gargalhadas. A escrita de João Ubaldo é um exemplo de maestria para figurar o oco de um pensamento defendido no Brasil e suas práticas. O Império era um teatro de horrores, como mostrou Machado de Assis.
A segunda camada é a encarnação do povo: Caboco Capiroba, Nego Leléu e a multidão da Irmandade existente na Ilha de Itaparica. O capítulo do Capiroba é um conto dentro do romance, podendo ser lido separadamente. Neste ponto, surge com força a escrita canibal dos modernistas. O caboco vive com as filhas em Itaparica e cria holandeses para engorda. Os portugueses são preteridos por ter carne gordurosa, imprestável para os devoradores. Uma das filhas gosta de fazer sexo com os prisioneiros holandeses. O autor antecipa a leitura decolonial que tem repercussão enorme nos dias atuais.
As cenas sexuais com os holandeses invertem o mito fundador de “Iracema”, de José de Alencar, que imaginou o amor de uma índia pelo colonizador português. Por outro lado, a caboca Vú “come” o holandês, até resultando na gestação de um filho. João Ubaldo Ribeiro subverte assim o encontro dos europeus com indígenas e negros, bem ao gosto do pensamento e da literatura pós-colonial de hoje. Na verdade, ele preferiria certamente manter uma boa distância dos pós-coloniais, mas tem afinidades evidentes, assim como seu amigo Glauber Rocha tinha olhos para a colonização.
O povo brasileiro aparece sintetizado em Nego Leléu, com sua língua afiada e sabedoria popular. Os leitores e leitoras ainda se encantam pela figura desbocada e verdadeira. Trata-se aparentemente da representação de um malandro, que oscila entre a ordem e a desordem social. Sobrevive de pequenas artimanhas e favores dos senhores grotescos. A visão de Leléu é iluminadora, tendo consciência do buraco sem fundo de Itaparica. O mesmo sentimento positivo aparece na Irmandade do Povo Brasileiro, que reúne aquela ralé de pobres, escravos e homens livres da ilha.
João Ubaldo criou os polos dos senhores (negativo) e dos pobres que vivem à deriva na ilha (positivo). Tese e antítese, se pensarmos em outros termos. A síntese possível se desenha no encontro de almas de Patrício Macário e Maria da Fé. Ele é o militar que vai contra sua classe social e defende a criação da República. Ela é a “guerrilheira”, sendo a última encanação da alminha que vaga de corpo em corpo, ao longo de séculos, desde o Caboco Capiroba. O amor deles poderia ser a utopia brasileira, mas falha ao gerar uma espécie de dialética negativa.
Nação em transe
A alminha é fonte das maiores críticas a “Viva o Povo”. Alguns enxergam um equívoco tremendo de João Ubaldo ao criar uma essência positiva que moldaria os brasileiros por séculos. Nos anos 1980, com a leitura francesa da desconstrução em voga, virou pecado mortal imaginar uma essência fixa da identidade nacional. Identidade seria coisa de conservador ou de marxista perdido no tempo. Para o novo pensamento, ser brasileiro deveria ser algo móvel, cambiante e bem distinto do que oferece a alminha — que remete, sim, ao realismo mágico da literatura latino-americana.
Outro pecado de Ubaldo seria a ideia de que a consciência dos personagens de “Viva o Povo” se manifesta apenas por meio de transes. Em grande parte do livro, o conhecimento da realidade pelos personagens se manifesta em rituais de origem africana, fora de um pensamento racional e crítico vindo da Europa. Foi uma leitura negativa do romance que prevaleceu por um bom tempo e se aproxima bastante das restrições feitas pela crítica, com frequência, à obra de Jorge Amado (uma influência confessa do autor).
Mas a função do transe pode ser uma das principais vias para novas leituras de “Viva o Povo”. Tem algo ali a ser explorado, como percebeu Itamar Vieira Júnior. O par Patrício Macário/Maria da Fé é uma reescrita de Riobaldo/Diadorim, do “Grande Sertão: Veredas” (1956), de Guimarães Rosa, que explorou à exaustão os pactos e relações para além do mundo racional e consciente. Basta lembrar que o nome de Diadorim era justamente Maria Deodorina da Fé Bettencourt Marins. Ambas marias da fé são donzelas guerreiras que se vestem de roupas masculinas para ir à luta.
O interesse por “Viva o Povo” deve crescer novamente por conta da onda de leituras pós-coloniais, decoloniais e do perspectivismo ameríndio. Há material em abundância para quem gosta de tais abordagens — o que transparece na recente versão teatral do romance. Outro aspecto produtivo é a visão da chamada “world literature” (a literatura-mundo), que mapeia as transformações da forma-romance dos europeus ao ser chegar à Ásia, à África e às Américas. Como poucos, João Ubaldo soube bem deturpar e retorcer a escrita europeia para expor o mundo do lado de cá.
Tempos atrás, Perry Anderson colocou João Ubaldo na galeria de autores e autoras que escreveram um novo romance histórico na virada do século 20 para o 21. Mas, ao invés do otimismo dessa forma histórica no século 19, a produção contemporânea retrata um passado de catástrofes. Essa é mais uma razão para se ler “Viva o Povo”, sobretudo após os acontecimentos políticos dos últimos anos na sociedade brasileira. Talvez exista uma alminha de certos senhores grotescos que teima em rondar o Brasil — e não uma alminha simpática e engraçada do povo.