Ação com Charlize Theron, na Netflix, foi vista por 100 milhões em todo o mundo Aimee Spinks / Netflix

Ação com Charlize Theron, na Netflix, foi vista por 100 milhões em todo o mundo

Charlize Theron tornou-se uma das figuras centrais em narrativas que mesclam ação intensa com complexidade emocional, um equilíbrio raro que só se sustenta em histórias cuidadosamente elaboradas, onde cada movimento é justificado por um enredo consistente. Isso ficou evidente em “Mad Max: Estrada da Fúria” (2015), dirigido por George Miller, e em “Atômica” (2017), de David Leitch. Theron compreende como poucos que a violência, quando bem dosada, não é o ponto focal, mas sim um meio de explorar a profundidade das emoções e das questões humanas envolvidas.

Em cada novo papel, a atriz se desfaz de suas antigas referências, mergulhando profundamente no universo de sua personagem, preservando, no entanto, uma energia primal, uma força que a empurra a resistir, mesmo que isso signifique suprimir emoções mais profundas para evitar levar consigo todos os que compartilham de sua condição. Esse domínio se intensifica ainda mais em “The Old Guard” (2020), onde Theron personifica com precisão uma figura cuja raiva e dor acumuladas ao longo dos séculos nunca se dissipam, fervendo lentamente sob a superfície.

Greg Rucka, responsável pela adaptação do romance gráfico que coescreveu com Leandro Fernandez, captura magistralmente o conflito central de Andy, a protagonista interpretada por Theron. Ele vai além das expectativas habituais de um enredo de super-herói, oferecendo uma perspectiva crua e honesta sobre a imortalidade. Andy, à semelhança de muitos heróis da Marvel ou DC, carrega o peso da culpa, do remorso e da raiva pelo que se tornou, sem que nada disso seja ocultado.

Desde o início, tanto a personagem quanto o roteiro deixam claro que não há nada a esconder. A dinâmica do grupo de imortais ao seu redor — cujo desenvolvimento ganha força no segundo ato — reforça a complexidade dessa narrativa. Se, por ventura, o público ainda não estiver cativado pela anti-heroína de Theron até este ponto, é quase certo que será conquistado rapidamente, compreendendo que até as fraquezas mais íntimas podem ser expostas sem medo.

No filme, Andy lidera um esquadrão de soldados imortais, incluindo Nicola, conhecido como Nicky (Luca Marinelli), Joe (Marwan Kenzari) e Booker (Matthias Schoenaerts). Booker, incorporado ao grupo em 1812, assume o papel de uma espécie de consciência coletiva da equipe, sendo ele quem descobre um aspecto crucial: quanto mais unidos estão, mais fortes se tornam.

Se decidem se separar, começam a sofrer visões de desastres iminentes, como uma premonição do que pode ocorrer com os outros. Este ponto levanta uma questão intrigante: quais são as verdadeiras consequências de enfrentar desgraças quando a morte não é uma opção? Booker permanece o membro mais jovem do grupo até a chegada de Nile, uma fuzileira naval interpretada por KiKi Layne. Nile, que descobre sua imortalidade de forma abrupta no Afeganistão após sobreviver a um ferimento fatal, é resgatada por Andy e seu grupo, sendo forçada a aceitar sua nova realidade, mesmo sabendo que isso significa deixar sua família para trás para sempre.

A diretora Gina Prince-Bythewood conduz com habilidade os inúmeros conflitos que emergem ao longo da trama. A complexidade dos relacionamentos e das motivações dos personagens é apresentada de maneira clara e envolvente. Entre os temas explorados, destaca-se a relação homoafetiva entre Nicky e Joe, dois guerreiros que se enfrentaram durante as Cruzadas, mas que, após se reconhecerem como almas gêmeas, nunca mais se separaram. Essa abordagem idealista do amor eterno é apenas uma das camadas que enriquecem a narrativa.

Outro destaque é a presença do vilão Lykon, interpretado por Chiwetel Ejiofor, cuja atuação é marcada por uma intensidade que contrasta com a insinuação de que as maiores desgraças humanas são originadas pela mente perversa do cientista Merrick, vivido por Harry Melling. Merrick, obcecado pela ideia de dissecar os imortais para descobrir a chave da vida eterna, personifica a ambição desmedida e o perigo do poder nas mãos erradas.

A ironia e o humor presentes em “The Old Guard” conferem ao filme uma distinção dentro do gênero, transformando-o em uma obra que desafia as convenções tradicionais. Essa mistura de seriedade e irreverência, somada à presença de personagens que parecem saltar da tela para a vida real, contribui para a sensação de que estamos diante de um marco do cinema contemporâneo. O filme deixa a impressão de que figuras como Andy, Nicky, Joe, Booker, Lykon e Merrick podem surgir a qualquer momento, tornando-se parte do nosso cotidiano. O que mais um cineasta e uma produção podem almejar além dessa rara fusão de realismo e fantasia?


Filme: The Old Guard
Direção: Gina Prince-Bythewood
Ano: 2020
Gêneros: Ação/Fantasia
Nota: 10/10