Hoje eu acordei e me certifiquei de que a louça estava lavada para poder emitir opinião.
Hoje recebi bombom no trabalho, bombom do meu filho, bombom do marido e conselhos para não comer tudo porque preciso me cuidar.
Hoje guardei minha liberdade na mochila e desisti de ir sozinha a outro país ou ao quarteirão mais próximo porque não devo perambular por aí sem ter a tiracolo uma figura masculina que avalize meu direito de não ser violentada.
Hoje me emocionei com o comercial sobre a dádiva de gerar uma vida no ventre e concordei na entrevista de emprego que não engravidaria tão cedo para não comprometer a produtividade da empresa.
Hoje eu me encantei com o coral da igreja homenageando as mulheres após ter visto sangue escorrendo do discurso do pastor sobre as “assassinas clandestinas que abortam”.
Hoje ouvi que muita coisa “mulher não pode”, mas no trânsito “só podia ser mulher”.
Hoje eu fiz compras acima de 50 reais e ganhei um cupom para concorrer a um jogo de panelas.
Hoje no canal dedicado às mulheres assisti ao tutorial de “como ser diva sem ser vulgar” trocando o batom vermelho vadia pelo rosa pra casar.
Hoje aprendi sobre moda e ouvi que existe a saia modelo “também né, provocou” e o vestido fechado da coleção “freia instinto masculino”.
Hoje brilhei estampando as páginas de criminalidade dos jornais apontada como alvo frequente.
Hoje recebi conselhos para cuidar melhor da casa, das crianças, da comida, do emprego, do corpo, da mente e do humor porque senão “que homem aguenta?”
Hoje enfrentei o preconceito travestido de piada inocente, o patrulhamento disfarçado de apoio, o julgamento que castiga camuflado de “é pro seu bem”.
Hoje engoli seco. Senti o peso de ter que regular excessos para não comprometer a honra. Admirei as que seguem o caminho amparadas pela escolha de serem maiores que regras e muros.
Hoje enfrentei um, dois, três, 300 mil. Fui algoz de mim mesma porque, antes de ser vítima, minha história precisa passar pelo crivo social e minha conduta tem que ser exemplar para que eu esteja apta a reclamar da violência sofrida.
Hoje fui ironizada pelo meu mimimi sem sentido já que “mulher tem os mesmos direitos, é só parar de chororô e ir à luta”, apesar de pesquisas evidenciarem salários divergentes para funções semelhantes e menor representatividade no topo da hierarquia.
Hoje, encorajada, dei a cara a tapa ao exigir equidade de gênero. Subjugada, recebi tapa na cara ao reagir à supremacia alfa do meu companheiro.
Hoje aplaudi as moças dos becos, dos conventos, das boates e dos institutos de pesquisa. As donas dos risos e dos choros. As donas de casa, de comércios e do próprio destino. As que usam renda, calças rasgadas, tênis surrado, saias rodadas e sapatinho de cristal. As Marias da Graça, da Penha, da vida, da igreja, do mundo.
Hoje agradeci às mulheres que, no passado, lançaram-se à fogueira social em nome de igualdade. Agradeci às que fazem isso atualmente desconstruindo a ideia de que não há mais nada o que reivindicar. Senti vergonha pelas vezes que me acovardo para me ajustar às convenções.
Hoje acordei com menos amarras do que 100 anos atrás e esperançosa de que, daqui a mais 100, eu acorde ainda mais livre.