Customizam-se tornozeleiras

Customizam-se tornozeleiras

Mastigava uma bisteca numa birosca perto de casa, quando fui surpreendido pela presença de um juiz de direito sentado na mesa ao lado, o qual, até bem pouco tempo, figurava nos noticiários com manchetes sobre o escândalo da venda de sentenças judiciais, que culminaram na sua prisão domiciliar e no afastamento temporário das funções de magistrado. Abu Dhab teria que esperar. Retiveram-lhe o passaporte. Estava proibido de deixar o país. Comentava-se à boca miúda que era altíssima a probabilidade de Sua Excelência ser castigada com uma aposentadoria compulsória que lhe renderia um final de vida medíocre, porém, confortável.

Nada mal. A autoridade judiciária, que devia contar sessenta anos e uns quebrados, almoçava com a família, segurando no colo uma criança de tenra idade, que brincava de atirar objetos no chão para que ele pegasse. Parecia divertido. Dava pra notar o volume sob a meia três quartos, e não era um maço de cigarros. Os demais convivas permaneciam calados, absortos, claramente concentrados numa realidade virtual que orbitava no universo paralelo das telas dos smartphones. Parecia uma típica família abastada, escravizada pelo vício da hiperconectividade.

As crianças. Sabem como são as crianças. De tanto gargalhar com as caretas e com os trejeitos do avô, o simpático pirralhinho regurgitou um substrato lácteo grudento sobre o peito do patriarca corrupto. Neste momento, todos os componentes da mesa desviaram os olhares para o desagradável incidente digestivo. Uma senhora feiosa, que bem poderia ter saído de um conto macabro do escritor Edgar Allan Poe, levantou-se atabalhoada e derrubou um copo com suco sobre a mesa ao acudir o esposo com um guardanapo de pano. A matrona siliconada, que parecia originária de uma sessão de eletrochoque do Manicômio Juquery, catou o guri e o entregou nos braços da filha, uma jovem mamãe que jazia abilolada na cadeira com cara de paisagem.

A maioria dos clientes virou o rosto, enojada com a situação. Não me senti incomodado com a indiscrição da gosma, mas, confesso o sentimento de asco pelo sujeito. Apesar de não ser um juiz de direito, considerei justa a regurgitação do baby sobre o colarinho branco do avô criminoso. Os vômitos tinham razão. Sua Excelência possuía um caráter de embrulhar o estômago. No lugar do magistrado, penso que ficaria um longo tempo sem dar as caras em locais públicos. Eu me escafedia, ora, se não. Acontece que esse tipo de gente fedegosa não sofria de compostura. Será que na segurança da alcova, ele admitiria, ele justificaria aos parentes os pecados cometidos? Será que, entre uma e outra garrafa de vinho californiano, a família conversava sobre temas espinhosos, como as escutas telefônicas comprometedoras, o uso humilhante das algemas, a prisão preventiva que deu nos telejornais, a retenção do passaporte pelas autoridades policiais e o uso compulsório de um dispositivo eletrônico atado à canela para que o dito-cujo não escapasse?

Salgadinho. Por onde andaria Salgadinho, aquele filho da puta. Salgadinho morava no mesmo condomínio de casas que eu. Gostava de fazer caminhadas altas horas da noite, sozinho, na companhia do demônio, quase sempre trajando boné, óculos escuros e uma calça de moletom para disfarçar a tornozeleira grudada na perna. Seu semblante indisfarçável era patético. Salgadinho fora pego numa fralde milionária que envolvia o recebimento de propina para a construção de portos, de ferrovias e de outras obras federais de infraestrutura.

Não sei se o constrangimento pelos graves ilícitos cometidos eximiria Salgadinho, o meu vizinho, do improvável sentimento de culpa, de puxar alguns anos de cadeia ou de perdurar na memória dos seus concidadãos. Eram tantos escândalos pipocando país afora que as pessoas acabavam se esquecendo. Que fim teria tomado o Salgadinho, que era fera no buraco e na peteca? De duas, uma: ou morreu de desgosto — e ninguém ficou sabendo — ou fugiu do país para se esconder num reduto seguro, onde faria as suas caminhadas matinais com a devida privacidade, sem o estorvo de uma tornozeleira pesando sobre o seu passado de gestor público corrupto.

Como vovó já me dizia, essa gente malandra, atoa e desonesta, não se apoquentava, pelo simples fato de não ter um pingo sequer de vergonha na cara.

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a Revista Bula há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente Bipolar, uma antologia de contos e crônicas.