“Minha história está contada/ vou me despedir”, canta Milton Nascimento em “Outubro”, faixa do álbum que ele gravou com a cubana Esperanza Spalding. Milton despediu-se, oficialmente, das turnês. Embora não, talvez, dos palcos. E que tenha lançado um trabalho na aposentadoria é uma notícia feliz. A voz do menestrel é demasiado rara para ficar em silêncio, no merecido conforto. Embora a idade tenha provocado nuances no timbre e na dicção.
Se a história de Milton está mais do que narrada em uma biografia dedicada à canção, a trajetória de Esperanza está em plena efervescência. Os caminhos de ambos se cruzam em diversas ocasiões, com Wayne Shorter fazendo o papel de padrinho. As colaborações jamais foram intensas como agora. A jovem artista veio ao encontro do artista idoso para sorver experiências e contribuir com sua bagagem. A grafia do título, “Milton + esperanza”, com o nome dela em minúscula, é um sinal de reverência.
O brasileiro recebe a visita com a gentileza peculiar de sua doçura, cercando-a de simpatias, como mineiro que se preze. “Em volta dessa mesa/ velhos e moços/ lembrando o que já foi”, exemplifica em “Saudade dos Aviões da Pan Air”, com amigos ao redor. Esperanza retribui com uma calorosa afeição pelo mestre, providenciando ligações a princípio inimagináveis.
A compreensiva dificuldade em alavancar um dueto com Paul McCartney, inacessível pela envergadura ilimitada, empalidece diante da façanha de colocar Paul Simon para interpretar, à distância (vá lá), em português límpido, a suave “Um Vento Passou”, feita para ele em momento de sensibilidade à flor do caos. Dueto que surge clássico pela singular natureza.
Se Milton, por sua vez, não se furta em articular palavras em inglês, Esperanza estabelece o vínculo com o idioma do anfitrião, aparentemente, sem embaraço. A suspeita de que as vinhetas com diálogos captados nos intervalos descontraídos sirvam como senhas ou chaves para ilustrar a entrada no enigma da melodia, que nasce sob o incentivo menos esperado, do prosaico ao reflexivo, não é de todo sem sentido.
A confraria dos músicos, afinal, se entende na linguagem universal dos instrumentos. Esperanza, por exemplo, é afinadíssima contrabaixista, entre arranjos que afloram nas partituras. A bússola que ela toma emprestada no jazz aponta não poucos momentos de folia. Como em “A Day in the Life”, onde o apelo pop dos Beatles, a banda daquele senhor endiabrado, frequenta outras modulações insinuantes e libertárias.
Assim como o violão de Guinga passeia com desenvoltura pelos caminhos percorridos por aquele preto velho, o Saci. A voz de Esperanza e a flauta de Elena Pinderhughes anunciam a Orquestra Ouro Preto em “Wings for the Thought Bird”. O que seria mais adequado para uma Orquestra de Ouro Preto do que participar de Morro Velho? É o que se dá com uma nostalgia bucólica, serena e discreta.
Dianne Reeves, Lianne La Havas e Maria Gadú representam, como se fosse necessário frisar em clave de sol, a capacidade de Milton em atrair cantoras para seu entorno iluminado. Dianne deixa um marcante registro em “Earth Song”, composição de Michael Jackson convertida aos encantos da diva. Carolina Shorter, brasileira que foi casada com Wayne, comparece no encerramento, em “When You Dream”, para completar um ciclo.
“Milton + esperanza”, à moda antiga, pede uma audição coerente com a sequência de suas faixas. Não se trata de um álbum ligeiro, que se ouve lavando a louça, embora nada impeça, a rigor, que o ouvinte tome suas decisões. Importa salientar que a respiração é compassada no andar dessa carruagem, contornando a ansiedade que parece tomar conta de qualquer atividade hoje em dia.
Logo, se você não tem paciência para ficar uma hora ouvindo Milton Nascimento e Esperanza Spalding, com acesso a digressões que possam motivar um atalho para alguma coisa com uma dinâmica mais eletrizante, a saída é passar ao largo com a desculpa de que as uvas estão verdes. Quem ficar até o final corre o perigo de ser recompensado com uma chuva de meteoros.