A tetralogia “José e Seus Irmãos”, de Thomas Mann, é uma das obras mais ambiciosas e menos compreendidas da literatura moderna. Composta por quatro volumes — “As Histórias de Jacó”, “O Jovem José”, “José no Egito” e “José, o Provedor” —, a obra ultrapassa duas mil páginas e reinterpreta, com uma profundidade incomum, a história bíblica de José e sua família. No entanto, a monumentalidade da tetralogia, tanto em termos de extensão quanto de escopo, intimidou críticos e leitores, impedindo-a de receber, até hoje, o reconhecimento amplo como a verdadeira obra-prima de Thomas Mann.
Acredito que a trajetória de leitura de um soldado da literatura precisa de determinação e sorte. Eu sempre tive muita sorte com relação à oportunidade de conhecer literatura, seja por ter chegado aos grandes nomes muito cedo, seja pelos interlocutores que tive ao longo da vida. Uma de minhas sortes foi ter lido a tetralogia mitológica de Thomas Mann enquanto cursava faculdade de História na Universidade Federal de Goiás e era aluno da brilhante Profª dra. Ana Teresa Marques, na disciplina de História Antiga. Por pura sorte, enquanto lia os quatro romances, tive um curso vertical e muito competente sobre o Egito com essa marcante professora, verdadeira enciclopédia viva. Fui vendo, no romance, tudo o que aprendi no curso, concomitantemente, e isso tornou minha leitura bastante privilegiada. Depois, sendo aluno do Prof. dr. Mário Luiz Frungillo, já na Faculdade de Letras também na Universidade Federal de Goiás, convivi com uma autoridade em Thomas Mann, hoje tradutor e professor de literatura alemã da Unicamp. Com ele tive a sorte de ter longas conversas a respeito de Mann e seus livros, especialmente “A Montanha Mágica”, “Doutor Fausto” e “José e Seus Irmãos”. Já mais velho e maduro, fui aluno do Prof. dr. Jorge de Almeida, meu orientador no doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo (USP), um dos maiores germanistas do Brasil, autoridade nos autores mais importantes da literatura alemã do século 20, brilhante professor e figura humana inesquecível por sua sabedoria, elegância, ética e cavalheirismo, um professor e intelectual modelo para seus alunos e colegas. Guiado por esses mestres, entre a Universidade Federal de Goiás e a Universidade de São Paulo, tive uma base sólida para a leitura de Thomas Mann e sua obra completa, na qual serei sempre um devoto leitor apaixonado, jamais um especialista revestido pela frieza da exegese pura.
Desde sua publicação, “José e Seus Irmãos” tem sido ofuscado por outras obras de Mann, como “A Montanha Mágica” e “Doutor Fausto”. A extensão da narrativa e a erudição exigida para a plena compreensão do texto tornaram-no uma leitura desafiadora, mesmo para os leitores mais atentos. Além disso, o contexto histórico da Europa, em meio à ascensão do nazismo, relegou a tetralogia a um papel de coadjuvante, enquanto outras obras de Mann ganharam maior destaque por sua abordagem mais direta de questões políticas e sociais. Mas é precisamente essa complexidade e essa riqueza de referências culturais e filosóficas que fazem de “José e Seus Irmãos” uma obra singular e de extrema importância dentro da obra de Mann.
A monumentalidade de “José e Seus Irmãos” não se limita à extensão física do texto. Trata-se de uma obra que abarca uma vastidão temporal, cultural e filosófica, reconfigurando a narrativa bíblica com uma profundidade que só Mann poderia alcançar. Ao transpor a história de José para um cenário que combina elementos do antigo Oriente Próximo com reflexões modernas sobre a humanidade e o divino, Mann cria uma narrativa que desafia os limites da forma romanesca. Como observa o crítico literário Erich Heller, “em “José e Seus Irmãos” Mann confronta o leitor com uma obra que é, ao mesmo tempo, um romance histórico, uma meditação filosófica e uma epopeia”.
O primeiro volume, “As Histórias de Jacó”, lançado em 1933, estabelece as raízes da narrativa ao focar na genealogia e na história da família de José. Thomas Mann leva os leitores de volta à ancestralidade de Jacó, explorando a vida do patriarca, suas relações familiares, e os eventos que levaram ao nascimento de seus filhos, especialmente José. Mann vai além da simples narrativa bíblica, desenvolvendo personagens complexos e suas motivações, ao mesmo tempo em que explora temas como a ambição, o desejo e a luta pelo poder. Através de uma linguagem rica e detalhada, ele constrói uma base sólida que contextualiza a ascensão de José como o predileto de Jacó e prenuncia os conflitos futuros.
O segundo volume, “O Jovem José”, publicado em 1934, foca na juventude de José e na relação ambígua que ele mantém com seus irmãos e com seu pai. Este volume é marcado por uma análise profunda da psicologia de José, retratado como um jovem talentoso e sonhador, cuja beleza e inteligência o tornam objeto de inveja e ressentimento. Mann descreve com maestria a crescente tensão entre José e seus irmãos, que culmina em sua traição e venda como escravo para o Egito. Neste livro, José começa a se distanciar do mundo de sua família, iniciando uma jornada que o levará a terras estrangeiras e a um destino que mudará o curso de sua vida. A obra explora a dualidade de José, ao mesmo tempo inocente e astuto, e suas primeiras interações com o poder e o sofrimento, elementos que irão moldar sua maturidade.
“José no Egito”, o terceiro volume, publicado em 1936, é o mais extenso e talvez o mais grandioso da tetralogia. Aqui, Mann narra a ascensão de José na terra do Egito, desde sua servidão na casa de Potifar até sua posição como governador de toda a terra egípcia. Este volume é uma epopeia em si, cheia de reviravoltas, intrigas políticas e religiosas, e um profundo mergulho na cultura egípcia, que Mann descreve com uma riqueza de detalhes fruto de extensa pesquisa. José, agora um homem maduro, se vê no centro das complexas tramas do poder e da fé, usando sua inteligência e carisma para ganhar a confiança do faraó e dos egípcios. Neste livro, Mann não apenas relata os eventos que levaram à ascensão de José, mas também explora temas universais como o destino, a justiça e a redenção, criando uma narrativa que vai muito além da história bíblica.
O quarto e último volume, “José, o Provedor”, concluído em 1943, traz a história de José ao seu ápice e conclusão. Agora governador do Egito, José enfrenta os desafios de governar em tempos de crise e, finalmente, reencontra sua família, num desfecho que mescla reconciliação e reflexão sobre o poder e o perdão. Mann explora a maturidade de José, que agora precisa lidar com as consequências de suas ações e as complexidades do poder absoluto. O retorno dos irmãos de José ao Egito, em busca de ajuda durante a fome, é narrado com grande intensidade emocional e profundidade psicológica, culminando na revelação de sua identidade e na reconciliação com sua família. Este volume finaliza a tetralogia com uma reflexão sobre o ciclo da vida, o perdão e a possibilidade de redenção, amarrando as linhas narrativas de forma a proporcionar uma conclusão poderosa e satisfatória à saga de José.
Esses quatro volumes, juntos, formam uma obra monumental que vai além da simples recontagem de uma história bíblica, oferecendo uma exploração profunda dos dilemas humanos, das complexidades do poder e da capacidade do espírito humano de perseverar através do sofrimento e do tempo.
A estrutura da tetralogia reflete a complexidade do tema abordado. Cada volume é uma peça interdependente de um todo maior, e Mann se utiliza de uma técnica de narrativa circular, com inúmeras digressões e variações temáticas, que exige do leitor uma atenção constante e um compromisso profundo com a leitura. Essa escolha estilística, que à primeira vista pode parecer prolixa, é na verdade essencial para a recriação do ambiente místico e histórico no qual se passa a história de José. Como Mann explica no prefácio ao primeiro volume, “a amplidão e a circularidade da narrativa são necessárias para refletir a natureza do tempo e do destino, que não seguem uma linha reta, mas se enrolam sobre si mesmos”.
A erudição de Mann é outro aspecto que contribui para a complexidade da tetralogia. Mann mergulha profundamente em fontes bíblicas, mitológicas e filosóficas para criar uma obra que não apenas reconta a história de José, mas a ressignifica em um contexto mais amplo. A própria Bíblia é tratada não apenas como texto religioso, mas como um artefato cultural e literário, sujeito a interpretações e reinvenções. Mann enche sua narrativa com alusões a textos antigos e modernos, desde a Epopeia de Gilgamesh até as obras de Goethe, criando um diálogo intertextual que enriquece a leitura, mas que também demanda do leitor um conhecimento prévio considerável.
Essa erudição, porém, não deve ser vista como um mero exibicionismo literário. Ela é fundamental para a compreensão da tetralogia como uma obra que transcende a mera recontagem de uma história bíblica. Mann usa a história de José como um prisma através do qual ele examina questões eternas sobre o poder, o destino, a moralidade e a condição humana. Segundo o estudioso T. J. Reed, “em “José e Seus Irmãos”, Mann transforma a história de José em uma meditação profunda sobre a ambiguidade moral e a complexidade do ser humano, fazendo desta obra um reflexo não apenas de uma época, mas de toda a experiência humana”.
Apesar de sua profundidade e complexidade, a tetralogia nunca perdeu de vista a dimensão narrativa. Mann, com sua habilidade incomparável de contar histórias, mantém o leitor cativado ao longo de milhares de páginas, mesclando o épico com o íntimo, o filosófico com o humano. As personagens, especialmente José, são dotadas de uma profundidade psicológica rara, e a história de sua ascensão e queda é narrada com uma clareza e uma empatia que tornam a leitura não apenas desafiadora, mas também profundamente recompensadora.
No entanto, a magnitude da obra, tanto em extensão quanto em densidade, continua a ser um obstáculo para muitos leitores e críticos. Como argumenta o biógrafo Hermann Kurzke, “a tetralogia ‘José e Seus Irmãos’ é uma obra-prima que requer do leitor uma dedicação e um comprometimento que poucas outras obras exigem, e é precisamente por isso que ela tem sido injustamente negligenciada em comparação com outras obras de Mann”. É uma obra que, devido à sua extensão e à sua profundidade, desafia as convenções da leitura e da crítica literária, mas que oferece, em contrapartida, uma recompensa incomensurável para aqueles que se aventuram em suas páginas.
É nesse sentido que “José…” deve ser reconsiderada como a obra-prima de Thomas Mann. Não é apenas uma reinterpretação da Bíblia, mas uma epopeia moderna, uma meditação filosófica e um estudo psicológico que se entrelaçam em uma narrativa de alcance universal. Ao invés de ser intimidado pela monumentalidade da obra, o leitor deve abraçar sua complexidade e permitir-se ser levado pelas correntes de uma das narrativas mais ambiciosas e profundas da literatura mundial.
Um dos aspectos mais fascinantes da tetralogia é a forma como Thomas Mann manipula o tempo, integrando e justapondo o tempo mítico e o tempo histórico para criar uma narrativa de profundidade singular. Essa combinação não apenas enriquece o texto, mas também desafia a percepção do leitor sobre a linearidade do tempo, criando uma estrutura que espelha a complexidade da experiência humana. Mann utiliza o tempo como um recurso narrativo que expande os limites do romance, criando um diálogo contínuo entre o passado arcaico e as realidades da modernidade.
O tempo mítico, em “José…”, é aquele que pertence ao domínio do eterno, do cíclico, onde os eventos, longe de serem únicos, adquirem uma ressonância universal. Esse tempo está profundamente enraizado nas tradições e mitos que Mann resgata e recria em sua obra. Como observa o estudioso John B. White, “Mann utiliza o tempo mítico para imbuir a narrativa de uma atemporalidade que faz com que a história de José se torne não apenas um relato de um período específico, mas uma meditação sobre a natureza eterna da existência humana e seus dilemas”. Essa atemporalidade é evidente nas reflexões filosóficas e nas descrições oníricas que permeiam a obra, criando uma atmosfera que transcende a simples cronologia.
Por outro lado, o tempo histórico é igualmente crucial na construção da narrativa de Mann. Ele é o tempo da contingência, das ações e consequências que moldam o destino das personagens dentro de um contexto específico. Mann situa a história de José dentro de um quadro histórico realista, minuciosamente pesquisado, que confere à narrativa uma base sólida na realidade da época em que se passa. No entanto, essa historicidade não é meramente descritiva; ela é também interpretativa. Mann explora como os eventos históricos e as forças sociais influenciam as vidas de seus personagens, ao mesmo tempo em que esses eventos são vistos à luz dos mitos e arquétipos que os sustentam. Como argumenta Erich Kahler, “em ‘José e Seus Irmãos’, o tempo histórico é constantemente permeado pelo tempo mítico, criando uma tensão dialética que reflete a luta entre o eterno e o temporal, o imutável e o mutável”.
Essa tensão entre os dois tempos é central para a compreensão da tetralogia. Mann, ao não separar rigidamente o tempo mítico do histórico, mas ao invés disso integrá-los em uma complexa tapeçaria narrativa, convida o leitor a refletir sobre a natureza do tempo e da história. O tempo mítico confere à narrativa uma dimensão simbólica, onde cada evento adquire significados que vão além do imediato, enquanto o tempo histórico ancorá-la na realidade concreta, nas dinâmicas de poder, nas mudanças sociais e culturais. Essa fusão dos tempos pode ser vista, por exemplo, na descrição da ascensão de José ao poder no Egito, onde os eventos históricos são apresentados como inevitáveis, quase predestinados, mas ao mesmo tempo são carregados de simbolismos que remetem a mitos e lendas antigas.
Além disso, Mann utiliza essa dualidade temporal para explorar o conceito de destino. No tempo mítico, o destino das personagens parece estar traçado, guiado por forças superiores e inevitáveis. No entanto, no tempo histórico, essas mesmas personagens agem com autonomia, influenciando e sendo influenciadas pelo curso dos eventos. Mann coloca o leitor diante de uma questão fundamental: até que ponto somos agentes livres de nosso destino, e até que ponto estamos presos a um tempo que nos antecede e nos ultrapassa? Essa questão é central para a figura de José, que, ao mesmo tempo em que parece ser um instrumento do destino, também exerce uma vontade própria que molda sua trajetória.
Outro crítico, Theodore Ziolkowski, enfatiza que essa interpenetração dos tempos cria uma “polifonia temporal” que é essencial para a estrutura da tetralogia. Segundo ele, “Mann constrói uma narrativa onde múltiplos tempos coexistem e dialogam, criando uma sinfonia de vozes que reflete a complexidade da história humana e sua interpretação através dos mitos”. Essa polifonia temporal permite que Mann explore a continuidade entre passado e presente, sugerindo que o mito e a história não são opostos, mas sim complementares na construção do sentido da existência.
A abordagem de Mann ao tempo em “José e Seus Irmãos” também é um reflexo de suas preocupações filosóficas. Influenciado por Nietzsche e por ideias sobre o eterno retorno, Mann utiliza o tempo mítico para sugerir que os eventos da história de José, e por extensão da humanidade, são parte de ciclos eternos que se repetem. No entanto, ele também reconhece a linearidade do tempo histórico, onde cada evento é único e irreversível. Essa dualidade temporal reflete uma visão de mundo em que o eterno e o efêmero, o universal e o particular, estão em constante diálogo, uma visão que desafia o leitor a repensar sua própria compreensão do tempo e da história.
Ao explorar o tempo em “José e Seus Irmãos”, Mann não apenas constrói uma narrativa de grande profundidade e complexidade, mas também propõe uma visão do tempo que transcende as categorias tradicionais. Ele nos convida a ver o tempo não como uma linha reta, mas como um tecido entrelaçado de histórias, mitos e realidades que se sobrepõem e se interpenetram. É essa visão do tempo que dá à tetralogia sua qualidade épica e que a estabelece como uma meditação profunda sobre a condição humana e sua relação com o passado, o presente e o futuro.
A paródia é um dos recursos literários mais sofisticados utilizados por Thomas Mann em “José e Seus Irmãos”, e sua função vai muito além do simples humor ou ironia. Através da paródia, Mann consegue recontextualizar a narrativa bíblica, tornando-a ao mesmo tempo familiar e estranhamente moderna, refletindo as crises e contradições do século 20. Ao reescrever a história de José com um tom que alterna entre o sério e o jocoso, Mann não apenas homenageia a tradição bíblica, mas também a subverte, permitindo que o texto funcione como uma crítica velada às condições sociais e políticas da época em que foi escrito.
A paródia em Mann não se limita à simples imitação ou exagero das características do texto bíblico; ela funciona em um nível mais profundo, onde a releitura do mito de José se torna uma forma de questionamento das verdades absolutas e dos valores estabelecidos. Como observa Donald Prater, em sua biografia de Mann, “ao parodiar a narrativa bíblica, Mann não apenas reconstrói a história, mas também desafia a autoridade dos mitos e das ideologias que sustentam as sociedades modernas”. Esse desafio é especialmente relevante no contexto de uma Europa dilacerada pelo totalitarismo, onde as antigas certezas morais e éticas estavam sendo destruídas.
A paródia, portanto, serve como uma ferramenta crítica que permite a Mann abordar questões contemporâneas através de uma narrativa aparentemente distante e arcaica. Por exemplo, a figura de José, com sua capacidade de interpretar sonhos e resolver problemas, é apresentada com uma certa ambiguidade. Por um lado, ele é retratado como um salvador, alguém que consegue lidar com crises complexas e, por outro, como uma figura que pode ser vista como manipuladora e ambiciosa. Essa ambivalência é central para a interpretação paródica de Mann, pois sugere que o poder e a habilidade de resolver problemas não estão isentos de moralidade dúbia.
Essa ambiguidade é ainda mais evidente quando se considera o contexto histórico do século 20, especialmente a ascensão do fascismo e do nazismo. Mann, que foi um crítico feroz dessas ideologias, usa a história de José para explorar como líderes carismáticos podem manipular crises sociais e políticas para alcançar seus próprios fins. Em um mundo onde a propaganda e a manipulação de massas estavam se tornando ferramentas poderosas para o controle político, a paródia de Mann revela a vulnerabilidade das massas e a ambiguidade moral daqueles que buscam o poder.
A ideia de José como um solucionador de problemas também é carregada de simbolismo, especialmente quando se considera o estado da Europa na época em que Mann escreveu a tetralogia. José, que no texto bíblico é um administrador capaz e um visionário, é transformado por Mann em uma figura que pode ser vista tanto como um herói quanto como um anti-herói. Ele é o homem que traz ordem ao caos, mas essa ordem é obtida através de métodos que podem ser moralmente questionáveis. A paródia aqui não é apenas sobre o personagem bíblico, mas também sobre as figuras políticas contemporâneas que prometiam estabilidade e prosperidade em troca da submissão ao poder autoritário.
Além disso, a paródia permite a Mann explorar a relação entre mito e realidade de uma maneira que desafia as expectativas do leitor. Ao apresentar José como um solucionador de crises, Mann faz uma analogia com a situação política da Europa na década de 1930 e 1940, onde líderes autoritários eram vistos por muitos como os únicos capazes de restaurar a ordem em tempos de crise. Como Prater aponta, “Mann utiliza a paródia para destacar as semelhanças entre as figuras míticas e os líderes contemporâneos, sugerindo que as promessas de salvação muitas vezes escondem uma realidade muito mais sombria”.
Essa análise é reforçada pela forma como Mann aborda a questão da justiça na tetralogia. José é visto como um árbitro de justiça, alguém que é capaz de reconciliar o que parece irreconciliável. No entanto, a justiça de José é, muitas vezes, mostrada como seletiva, favorecendo aqueles que estão dispostos a submeter-se à sua autoridade. Essa visão crítica do poder é uma reflexão direta sobre as dinâmicas de poder da época de Mann, onde a justiça e a lei eram frequentemente distorcidas para servir aos interesses dos poderosos. A paródia, nesse caso, não é apenas uma técnica literária.
Mann também utiliza a paródia para explorar o tema do destino, um conceito central tanto na narrativa bíblica quanto na filosofia moderna. José, com sua habilidade de prever o futuro através da interpretação de sonhos, é visto como um homem em sintonia com as forças do destino. No entanto, Mann subverte essa ideia ao sugerir que o destino de José não é uma questão de predestinação divina, mas sim de manipulação e controle. Como observa Prater, “Mann usa a paródia para questionar a noção de destino, sugerindo que o que parece ser inevitável é, na verdade, o resultado de escolhas humanas e manipulações políticas”.
Essa subversão do destino é particularmente relevante quando se considera o contexto histórico da Europa na primeira metade do século 20. As ideologias totalitárias frequentemente se apresentavam como inevitáveis, como o cumprimento de um destino histórico. Mann, através da paródia, desmascara essa ideia, mostrando que o destino é algo que pode ser moldado, distorcido e manipulado por aqueles que têm o poder. José, portanto, se torna um símbolo tanto da esperança quanto do perigo, uma figura que pode trazer salvação, mas também destruição.
Outro aspecto importante da paródia na obra é a forma como Mann lida com a questão da identidade. José, ao longo da narrativa, assume várias identidades — o filho favorito, o escravo, o prisioneiro, o governante — e cada uma dessas identidades é moldada pelas circunstâncias e pelas expectativas daqueles ao seu redor. Mann usa a paródia para mostrar como a identidade é algo fluido, algo que pode ser construído e reconstruído de acordo com as necessidades do momento. Essa visão é um reflexo direto das questões de identidade e de nacionalidade que estavam em jogo na Europa da época, onde as fronteiras e as identidades nacionais estavam sendo constantemente redefinidas.
A paródia também permite que Mann explore o tema da memória e da história. José, que em certo sentido personifica a memória cultural da humanidade, é mostrado como uma figura que pode tanto preservar quanto distorcer o passado. Mann usa a paródia para destacar como a história é frequentemente reescrita pelos vencedores, como as memórias são moldadas pelos poderes estabelecidos para servir a seus próprios fins. Essa visão crítica da história e da memória é particularmente relevante no contexto do século 20, onde a propaganda e a manipulação da história se tornaram ferramentas essenciais para o controle político.
A paródia em “José…” serve como um lembrete de que, por trás das grandes narrativas de poder e destino, existem seres humanos com suas próprias fraquezas, ambições e contradições. José, apesar de sua habilidade de resolver crises e de sua aparente sabedoria, é também um homem com falhas, cujas ações nem sempre são guiadas por motivos nobres. Mann, ao parodiar a figura do herói bíblico, humaniza-o, mostrando que mesmo aqueles que parecem estar em sintonia com o destino são, no final das contas, seres humanos limitados por suas próprias circunstâncias.
A paródia, neste romance gigantesco, é uma ferramenta fundamental através da qual Thomas Mann explora as complexidades do poder, do destino e da identidade no contexto de uma Europa à beira do colapso. Ao utilizar uma narrativa bíblica para fazer uma crítica velada à política contemporânea, Mann cria uma obra que é ao mesmo tempo atemporal e profundamente enraizada em seu tempo. Através da figura de José, Mann nos convida a refletir sobre as promessas e os perigos daqueles que se apresentam como solucionadores de crises, lembrando-nos de que, por trás das grandes narrativas, sempre há um elemento de paródia, de incerteza e de ambiguidade.
Os momentos de maior beleza na tetralogia são aqueles em que Thomas Mann transcende a narrativa histórica e se lança em descrições líricas que capturam a essência da experiência humana e a majestade do mundo antigo. Esses momentos não são apenas esteticamente sublimes, mas também carregados de significado, refletindo as grandes questões que permeiam a obra — a história, o poder, a reconciliação e o destino.
Um dos momentos mais memoráveis ocorre quando José, ainda jovem, avista pela primeira vez uma pirâmide. Esta cena é um exemplo clássico de como Mann combina a beleza visual com uma profunda reflexão simbólica. A pirâmide, com sua forma geométrica pura e sua monumentalidade, não é apenas um marco arquitetônico; ela simboliza a permanência e o poder do Egito, uma civilização que, na narrativa de Mann, representa tanto a opressão quanto a glória. O trecho em que José avista a pirâmide pela primeira vez é carregado de admiração e respeito.
Mann escreve: “Ele se deteve ao ver, à distância, erguendo-se sobre o horizonte, uma forma que desafiava a razão e a imaginação — uma montanha feita por mãos humanas, subindo do deserto como um monumento eterno à ambição e à conquista. José sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Aquilo que via, ele compreendia, era algo destinado a durar, muito além da vida de qualquer homem”.
Este momento marca o início da integração de José à civilização egípcia, um ponto crucial na narrativa, pois a partir desse encontro, José começa a se transformar de um jovem sonhador e ingênuo em um homem que compreende as forças do poder e do tempo. A pirâmide representa a eternidade, algo que José, ao longo de sua trajetória, aprenderá a valorizar e a temer.
Outro momento de extraordinária beleza literária ocorre na introdução do primeiro volume. Aqui, Mann elabora uma espécie de teoria da história que permeia toda a tetralogia. Ele inicia a narrativa com uma meditação sobre o tempo e a memória, tecendo uma reflexão sobre a natureza da história como uma combinação de fato e mito, realidade e imaginação. Mann começa a obra com uma visão ampla, quase cósmica, do tempo, declarando:
“Profundamente enterrado nas raízes do passado, no ventre do tempo, está o começo, o primórdio de tudo — as sombras que ainda hoje moldam nossas vidas. O que chamamos de história é apenas a superfície, mas há camadas abaixo dela, camadas de lembranças e mitos que sustentam o mundo visível”.
Esse prólogo estabelece o tom para a narrativa que se seguirá, em que a história de José será contada não apenas como um relato factual, mas como uma exploração dos significados mais profundos que a história pode oferecer. Mann parece sugerir que para compreender plenamente o presente, é necessário mergulhar nas profundezas do passado, onde mito e realidade se entrelaçam de maneira inseparável. Esse trecho é emblemático da abordagem de Mann à história, que não é apenas uma crônica de eventos, mas um meio de explorar as verdades fundamentais da existência humana.
O reencontro de José com sua família é outro dos pontos culminantes da tetralogia, tanto em termos emocionais quanto literários. José, que foi vendido como escravo e ascendeu ao poder no Egito, reencontra seus irmãos e seu pai em uma cena que é ao mesmo tempo dolorosa e redentora. Esse momento é repleto de tensão dramática, pois José, agora governador do Egito, tem o poder de punir ou perdoar seus irmãos, que o traíram. Mann descreve o reencontro com uma sensibilidade notável:
“Quando José viu seus irmãos diante de si, a princípio seu coração endureceu. Mas então, ao ouvir o lamento de Judá e ao ver o rosto envelhecido de seu pai, algo dentro dele se quebrou. Lágrimas brotaram de seus olhos, e ele se jogou nos braços de seus irmãos, perdoando-os com uma generosidade que ele próprio não sabia que possuía”.
Essa cena é um momento de beleza e de reconciliação, em que o perdão emerge como a força dominante, superando o ressentimento e a vingança. É uma das passagens em que Mann captura a complexidade das emoções humanas, mostrando como o amor familiar, apesar de todas as traições, pode prevalecer sobre a amargura.
Através dessas cenas, Mann oferece ao leitor uma experiência de leitura que vai além da simples narrativa; ele cria momentos de intensa beleza que ressoam profundamente no espírito humano. Esses momentos servem como pontos de reflexão dentro da obra, onde o tempo parece parar, e o leitor é convidado a contemplar não apenas a história de José, mas as grandes questões da vida — a passagem do tempo, o poder da memória e a força do perdão.
Ao longo de toda a tetralogia, Thomas Mann utiliza esses momentos de beleza para tecer um afresco rico e complexo, onde o antigo e o moderno, o mito e a realidade, o passado e o presente se encontram e se fundem em uma visão única do que significa ser humano. Essas passagens exemplificam o poder de Mann como escritor, capaz de transformar uma narrativa bíblica em uma obra-prima da literatura moderna, repleta de significados profundos e de uma beleza que transcende o tempo.
“José e Seus Irmãos” não é apenas uma obra monumental em termos de extensão e profundidade, mas também em termos de sua longa e complexa gestação. Thomas Mann dedicou cerca de dezesseis anos à criação dessa obra, desde a concepção da ideia inicial até a conclusão do último volume, um processo que foi interrompido por longos intervalos e pela produção de outras obras literárias. Este projeto, iniciado em um momento de transição na vida de Mann, envolveu uma dedicação extraordinária tanto em termos de pesquisa quanto de reflexão literária.
A ideia de escrever “José…” surgiu em Mann em meados da década de 1920, durante um período de profunda mudança em sua vida pessoal e profissional. Após o sucesso de “A Montanha Mágica”, publicado em 1924, Mann estava em busca de um novo projeto literário que pudesse continuar a explorar as grandes questões filosóficas e culturais que haviam marcado sua carreira até então. Foi nesse contexto que ele começou a se interessar pela figura de José, uma personagem bíblica que, como ele próprio descreveu, encarnava tanto o arquetípico quanto o histórico. Mann viu em José a oportunidade de explorar temas universais como a relação entre mito e história, a natureza do poder e a ambiguidade moral, tudo dentro de uma narrativa de grande alcance.
O primeiro volume da tetralogia começou a ser escrito em 1926, mas Mann não o concluiu até 1930. Este primeiro volume foi um grande empreendimento, tanto em termos de pesquisa quanto de escrita. Durante esses anos, Mann se aprofundou em estudos de história antiga, mitologia e exegese bíblica, buscando compreender as raízes culturais e religiosas da história de José. Este volume também reflete a teoria da história que Mann estava desenvolvendo na época, uma teoria que via a história não como uma simples crônica de eventos, mas como uma narrativa em que mito e realidade se entrelaçam de maneira complexa.
Após a publicação de “As Histórias de Jacó” em 1933, Mann entrou em um período de produção intensa. Embora estivesse profundamente imerso na criação da tetralogia, ele também encontrou tempo para escrever outras obras. Durante o intervalo entre os volumes de “José e Seus Irmãos”, Mann escreveu ensaios políticos, como “A Necessidade da Cultura”, e o técnicas perfeito romance “Carlota em Weimar”, que explora a figura de Goethe e as complexidades da vida intelectual alemã. Esses trabalhos paralelos mostram como Mann estava constantemente engajado em uma ampla gama de preocupações literárias e filosóficas, mesmo enquanto se dedicava ao seu épico bíblico.
O segundo volume foi publicado em 1934, um ano após Mann ter deixado a Alemanha em exílio devido à ascensão do nazismo. Este volume, que retrata a juventude de José e seu gradual afastamento de sua família, reflete tanto a continuidade da pesquisa de Mann quanto as novas influências de seu exílio. A complexidade psicológica do personagem de José e as reflexões sobre o poder e a identidade ganham novas camadas à medida que Mann enfrenta as realidades políticas de seu tempo.
O terceiro volume foi concluído em 1936 e publicado em 1937, e é talvez o mais grandioso em termos de alcance histórico e cultural. Durante a escrita deste volume, Mann realizou uma extensa pesquisa sobre o Egito Antigo, incluindo uma viagem ao Egito em 1936. Acompanhado por renomados historiadores e arqueólogos especializados na civilização egípcia, Mann visitou locais históricos como Luxor, Karnak e, claro, as grandes pirâmides de Gizé. Especula-se que Mann gastou quase todo o seu dinheiro nessas pesquisas. Essas experiências permitiram a Mann enriquecer sua narrativa com detalhes históricos e culturais autênticos, ao mesmo tempo em que reforçavam o caráter mítico e simbólico da história. Mann também trabalhou em estreita colaboração com especialistas para garantir a precisão dos detalhes sobre a vida e a cultura egípcia, desde os costumes do dia a dia até os rituais religiosos.
O quarto e último volume foi concluído em 1943 e publicado em 1944, no auge da Segunda Guerra Mundial. Este volume, que narra o auge do poder de José e sua eventual reconciliação com sua família, foi escrito em um período de grande turbulência pessoal e histórica para Mann. O exílio, a guerra e a crise cultural e política que assolava a Europa tiveram um impacto profundo sobre o tom e o conteúdo deste volume. Embora o foco da narrativa permaneça em José e em sua trajetória pessoal, as sombras da guerra e da destruição que Mann testemunhava no mundo real ecoam na melancolia e na gravidade do texto.
Ao longo de todo o processo de criação de “José…”, Thomas Mann dedicou-se não apenas à escrita, mas também a uma profunda investigação histórica e cultural. Ele mergulhou nas fontes bíblicas e literárias, assim como nas pesquisas mais recentes da arqueologia e da história egípcia, para criar uma obra que fosse ao mesmo tempo fiel ao seu contexto histórico e relevante para as questões de sua época. A combinação de rigor acadêmico e imaginação literária resultou em uma obra que, embora ambientada em um passado remoto, dialoga intensamente com o presente, refletindo as preocupações de Mann com a condição humana, o poder e o destino.
A conclusão da obra marcou o fim de um período importante na carreira de Mann, consolidando-o como um dos maiores escritores do século 20. A obra, com sua profundidade filosófica, beleza literária e abrangência histórica, não é apenas um marco na literatura alemã. Mann, ao final de sua jornada criativa com esta obra, havia conseguido não apenas reinterpretar um dos mitos fundadores da civilização ocidental, mas também criar uma obra que continua a ressoar com leitores de todo o mundo, oferecendo novas perspectivas sobre os desafios e as complexidades do mundo moderno.
A recepção crítica da tetralogia foi variada e complexa, refletindo tanto o impacto profundo que a obra exerceu sobre seus leitores quanto as divergências que ela suscitou entre críticos e intelectuais. Desde sua publicação, a obra foi amplamente debatida, gerando elogios por sua ambição literária e profundidade filosófica, mas também questionamentos sobre sua extensão e abordagem dos temas religiosos e históricos.
Um dos primeiros críticos a reconhecer a importância da tetralogia foi Hermann Hesse, amigo e contemporâneo de Thomas Mann. Em uma carta a Mann, Hesse expressou sua admiração pela obra, especialmente por sua capacidade de combinar o mito e a história de maneira tão profunda. Hesse escreveu: “Em ‘José e Seus Irmãos’, você conseguiu criar algo que não é apenas uma obra de arte, mas uma reinterpretação profunda da tradição bíblica, que dialoga com nosso tempo de maneira admirável”.
Outro grande escritor que se pronunciou sobre a obra foi André Gide, que considerava “José e Seus Irmãos” uma das mais importantes criações literárias do século 20. Em seu ensaio “Reflexões sobre Thomas Mann”, Gide afirmou: “Thomas Mann, em sua tetralogia, realiza uma façanha literária sem precedentes. Ele toma uma narrativa antiga e a transforma em uma meditação sobre o destino humano e a moralidade, enriquecendo o texto bíblico com uma complexidade psicológica que é profundamente moderna”. Gide elogiou a forma como Mann preservou o caráter sagrado da história, ao mesmo tempo em que introduzia uma análise crítica da condição humana.
Walter Benjamin, outro influente crítico alemão, abordou a tetralogia em seus ensaios sobre literatura e história. No ensaio “A Tarefa do Tradutor”, Benjamin refletiu sobre o uso do mito em “José e Seus Irmãos”, destacando a capacidade de Mann de revitalizar mitos antigos para explorar as questões contemporâneas. Benjamin escreveu: “Mann demonstra, em sua obra, como o mito pode ser recontextualizado para revelar as contradições e complexidades da modernidade. José não é apenas um personagem bíblico, mas um arquétipo que nos permite explorar as tensões entre o destino e a liberdade no mundo moderno”.
A crítica acadêmica também reconheceu a importância da tetralogia. O estudioso Erich Heller, em seu livro “A Era de Thomas Mann”, afirmou que “José…” era a culminação da carreira literária de Mann, uma obra que “sintetiza todas as preocupações filosóficas e literárias do autor, desde seu interesse pelo poder e a política até sua exploração da moralidade e da redenção”. Heller argumentou que a tetralogia representa o auge do projeto de Mann de conciliar a tradição literária com as questões mais urgentes do seu tempo.
O próprio Mann, em sua biografia escrita por Donald Prater, “Thomas Mann: Uma Vida”, reflete sobre a recepção de sua obra e como ela foi inicialmente subestimada por alguns críticos, mas posteriormente reconhecida como uma obra-prima. Prater cita Mann afirmando que “a recepção inicial de ‘José e Seus Irmãos’ foi fria em alguns círculos, talvez por causa de sua extensão e da abordagem lenta e meticulosa. No entanto, com o tempo, a obra encontrou seu lugar como uma das realizações mais significativas da minha carreira, uma que reflete a profundidade e a complexidade da condição humana”.
Mario Vargas Llosa, em seu livro “Cartas a um Jovem Romancista”, discute a obra como um exemplo de como a literatura pode transcender o tempo e o espaço. Llosa escreve: “A obra de Mann é um exemplo supremo de como a literatura pode resgatar o passado e dar-lhe nova vida, criando uma narrativa que, embora ancorada em um contexto histórico específico, fala às preocupações universais da humanidade”.
Essas reflexões de escritores e críticos destacam a complexidade e a profundidade de “José…”, reconhecendo-a como uma das maiores realizações de Thomas Mann. A obra não apenas reinterpreta um dos mitos fundadores da civilização ocidental, mas também oferece uma meditação profunda sobre a história, a moralidade e a condição humana, ressoando com leitores e críticos através das décadas e consolidando seu lugar como uma das obras-primas da literatura mundial.
Ler “José e Seus Irmãos” é mergulhar em uma experiência literária que se desdobra em múltiplas dimensões, oferecendo muito mais do que uma simples narrativa histórica. O primeiro grande motivo para se aventurar nessa obra monumental é o prazer de testemunhar a maestria de Mann em transformar uma história bíblica conhecida em uma epopeia literária.
Outro motivo convincente é a maneira como Mann aborda o tempo, entrelaçando o mítico e o histórico. Mann nos convida a considerar a história não como algo distante e estático, mas como uma narrativa viva que continua a moldar nossa compreensão do mundo e de nós mesmos.
Além disso, a tetralogia é uma aula de estilo literário. Mann escreve com uma elegância e riqueza de linguagem que tornam cada página um deleite estético. Sua prosa é ao mesmo tempo lírica e precisa, criando imagens vívidas e reflexões profundas que nos mantêm cativados, página após página. Ler Mann é experimentar a literatura em sua forma mais pura, onde cada frase é cuidadosamente lapidada, onde o ritmo da narrativa nos conduz suavemente por um universo de ideias e emoções.
O quarto motivo é o poder de Mann de abordar questões universais através de uma história particular. Embora o cenário seja o Egito antigo e os personagens sejam figuras bíblicas, os temas que Mann explora — a ascensão e queda do poder, a luta pela identidade, a redenção através do sofrimento — são eternos. A história de José torna-se, assim, uma meditação sobre a condição humana, relevante em qualquer tempo e lugar.
“José…” é uma obra que desafia o leitor a refletir sobre a natureza da verdade e da ficção. Mann brinca com a fronteira entre mito e realidade, sugerindo que as grandes narrativas do passado, embora fundadas em fatos históricos, são recriações contínuas da imaginação humana. Ler esta obra é não apenas um exercício de leitura, mas também uma jornada de autodescoberta, onde somos levados a questionar nossas próprias histórias, crenças e a maneira como compreendemos o mundo ao nosso redor. É, sem dúvida, uma das razões mais poderosas para se aventurar nas páginas desta obra-prima literária.
Concluir a leitura deste livro é como emergir de uma longa e profunda viagem através do tempo, do mito e da história, guiados por uma das mentes mais brilhantes da literatura mundial. Thomas Mann não apenas recriou uma narrativa bíblica, mas construiu um universo literário em que as complexidades da alma humana são exploradas com uma riqueza e profundidade incomparáveis. Cada página da tetralogia ressoa com a sabedoria de um autor que, consciente das sombras que o cercavam no século 20, ainda assim conseguiu projetar uma luz poderosa sobre a condição humana, revelando suas ambiguidades e grandezas.
Ao finalizar essa obra monumental, somos deixados com um sentimento de triunfo, não apenas pelo feito literário de Mann, mas também pela transformação que ela opera em seus leitores. Livro que transcende o mero relato histórico ou bíblico; é uma celebração do poder da narrativa, da força do espírito humano e da capacidade da arte de nos conectar com o eterno. Ler Mann é ser elevado a um plano mais alto de compreensão e sensibilidade, onde mito e realidade se fundem, e onde a literatura se torna um espelho que reflete tanto o passado quanto o futuro da humanidade. É, sem dúvida, uma experiência que enriquece, ilumina e transforma, consolidando-se como uma verdadeira obra-prima da literatura mundial, e a maior obra da carreira de Thomas Mann, sua verdadeira obra-prima, seu opus magnum.