Será impossível discutir arte sem apelar para o “gosto”? Depende: se gosto é “critério”, estética também é, e estética prescinde do gosto. Mais que isso, estética é argumento, gosto não: gosto não tem conteúdo. O que o gosto normalmente chama de arte é mistificação. Portanto, não se enquadra no que a estética (domínio por excelência dos artistas) define como arte.
A confusão começa quando acham que define. E piora quando, diante de esforços sérios de compreensão da arte, muitas pessoas, à falta de argumentos, apelam para ofensas pessoais do tipo: “Isso é inveja”, “idiotice cult”, entre outras. Mas é inútil. O gosto não define o que é a arte para a História, para a Filosofia e, principalmente, para os artistas que realmente importam.
É sintomático que nenhum grande artista ou grande escritor (veja bem: eu não disse “celebridade multimilionária”) faça referência a artistas ou a escritores menores. Rigorosamente todas as entrevistas de artistas realmente importantes (veja bem: não se disse “entrevista de críticos”), todas elas, ao citar outros artistas, citam apenas nomes que se encaixam no conceito aqui utilizado. Desafio qualquer leitor injuriado a provar o contrário. Não vale ter lido entrevistas de Paulo Coelho, Romero Britto ou Silvya Day. Isso é entretenimento fácil, evasão, escapismo. Feito para as pessoas que chegam em casa “cansadas e não querem saber de problemas”, querem apenas “descansar a cabeça”. Ouve-se este tipo de alegação o tempo todo.
Se a arte fosse se preocupar com a cabeça das pessoas ela deixaria de refletir a realidade e viraria analgésico, entorpecente. Justamente o que a indústria cultural, e não a arte, se propõe a fazer.
Os próprios artistas, aqueles que realmente importam, é que são “chatos”, quando convidados a revelar suas influências. Isso é sintomático e prova alguma coisa às pessoas razoáveis. O fato de só citarem outros artistas importantes é indício de que existe, objetivamente, um fenômeno chamado arte, que não depende de gosto. Porque não é coincidência que tais nomes invariavelmente só correspondam aos de determinados artistas, e não de outros. É possível fazer até estatística, sobre isso! A arte, baseada no gosto, é, no máximo, objeto da Sociologia, não da estética. É a Sociologia que define as carências sociais que alimentam essa arte menor, inteiramente subjetiva, sem fundamento, sem teoria, sem nada. Pode-se achar ruim, mas as opiniões em contrário só valem pra quem as tem. Já em torno da estética existem consensos universais.
Olhe só o contrário: “Gosto não se discute”! Grande parte das pessoas repete essa frase maquinalmente, sem pensar, o que só confirma tudo o que está sendo dito aqui, em desfavor justamente dos que a utilizam. Porque, em regra (eu disse “em regra”), quem apela para o gosto nunca se interessou por estética, Filosofia ou História da Arte, nem sequer lê ficção ou aprecia as obras consagradas como arte por essa tríade, o que já bastaria. Como se vê, o gosto normalmente vai na contramão da arte. De acordo com o gosto uma obra pode ser “linda”, “eletrizante”, “emocionante”, mas, outra vez, não é arte. Quem apela para o gosto consegue, quando muito, acrescentar mais uma linha aos seus motivos, dizendo que a arte é “subjetiva e cada um tem o direito de gostar do que quiser”.
A segunda parte da frase subscreve-se integralmente. A primeira é puro desconhecimento. Não é verdade que a arte é tão subjetiva quanto o gosto, senão não teria produzido tantas teorias, aplicadas com rigor científico por meio das técnicas. Exceto o Dadaísmo, qualquer movimento literário ou artístico sério — Simbolismo, Cubismo, Naturalismo, Expressionismo, Abstracionismo, Realismo, Antropofagia etecetera — fundou uma nova teoria. Já o que o gosto chama de “arte” não gerou nenhum estudo sobre a técnica, a linguagem, a cor, a forma, a harmonia, o conteúdo, nada. Por definição é impossível ao gosto gerar conhecimento. Sendo irracional, nunca escreveu um só parágrafo, nunca refletiu nada nem nunca o fará. Por isso é mistificação.
Qualquer um pode gostar e tem o direito de gostar do que quiser; apenas, pela enésima vez, não dá para fazer confusão: aquilo que o gosto chama de arte não o é, quase sempre. Tampouco o que está escrito aqui “é arte em minha opinião”. Eis justamente o que está escrito aqui não é: opinião, achismo.
Diferente de gosto, a noção de arte aqui defendida é um conceito (até a ciência é um conceito!). Tendo isto claro, o conceito de arte pressupõe a autoridade da História e da Tradição; uma sequência ao longo do tempo capaz de estabelecer uma coerência entre o homem e a imagem que constrói de si mesmo, segundo a realidade e as técnicas disponíveis em cada época. De acordo com este conceito socialmente estabelecido, a arte não é o que “eu” acho que é arte. A arte é o que um conjunto de fatores objetivos — artistas, especialistas e opinião pública — concordam que melhor representa, em termos de expressão, a mentalidade de uma sociedade, no tempo e no espaço. Portanto, arte não é uma questão de gosto, embora possa-se gostar ou não de determinadas obras de arte.
A arte é uma forma de conhecimento orgânica e fundamentada. Ainda quando a arte é irracionalista, como o Surrealismo, ou anti-racionalista, como o Neoconcretismo, é possível estudá-la objetivamente; inseri-la num contexto gnosiológico. Este é o conceito de arte por trás de instituições como Masp, Louvre, Osesp e Academia Brasileira de Letras. Graças a este conceito de arte temos o privilégio de reconhecer Miguel Ângelo, Machado de Assis, Velásquez, Bach, Clarice Lispector e Portinari como grandes artistas — mas não Sidney Sheldon ou Jorge e Mateus. Portanto o conceito de arte não é o que “eu”, individualmente, acho que é bom.
Se artistas como Leonardo da Vinci dependessem de quem utiliza o gosto como critério, provavelmente a “Mona Lisa” estaria apodrecendo num porão, porque não saberiam reconhecer os valores estéticos que a fizeram chegar até o Louvre. Logo, para se reconhecer obras deste gênero é indispensável a coisa que mais obsediava o próprio Leonardo: o conhecimento. Não, não é preciso ler quilos de livros. Mas é preciso respeitar a autoridade de artistas deste nível. Eles sabem o que estão falando. Nós, às vezes, é que não compreendemos.
A propósito, as teorias da arte nem sempre foram escritas pelos “chatos”, que é como muitas pessoas, sentindo-se injuriadas, se referem aos críticos. Tais teorias foram escritas também pelos artistas. Prova-se este argumento citando um livro traduzido, “Teorias da Arte Moderna”, de Herschel B. Chipp. Trata-se de uma compilação de textos teóricos escritos principalmente por artistas, desde os anos 1860 até a Segunda Guerra Mundial. Textos de Paul Cézanne, van Gogh, James Ensor, Paul Klee, Guillaume Apollinaire, Pablo Picasso, Wassily Kandinsky, Tristan Tzara, André Breton, Clyfford Still, enfim — apenas artistas. Os grandes artistas, porque os artistas menores não pensam e não escrevem nada. Acham “chato”.
Os adeptos do gosto alegam, apesar do que está escrito no parágrafo anterior, que “a arte não pode ser categorizada”. Vê-se enxurradas de frases do tipo. Mas a arte não só pode ser categorizada, e não só nos tempos modernos, como isso acontece desde a Antiguidade. Um exemplo é “A Poética”, de Aristóteles. Outra vez, desinformação do gosto que, se não entende de estética, não pode entender de arte. É uma conclusão lógica.
Ao achar que a arte prescinde de técnica, de teoria, de conhecimento, de estudo, uma parcela da opinião pública confunde arte com sentimento; uma coisa mágica, sem explicação, como se fosse um fluído exotérico. Pura gratuidade. Não parece difícil concordar que tudo isso desmerece o esforço dos artistas que estudam seu ofício por anos a fio, e contribui para que não sejam levados a sério. É um grave equívoco. Talvez isso explique por que o que é apreciado não é sério, e o que é sério seja sistematicamente desvalorizado.
Muitos desses adeptos do gosto talvez tenham filhos em escolas de arte, o que é contraditório: o que os filhos aprendem, na escola de arte, é que arte tem História e é objeto da estética. Não do gosto. Porque “subjetividade” não é disciplina de arte (podem conferir na grade curricular), e “fluídos” não formam ninguém, pra nada.
Como se tentou demonstrar com argumentos, arte é bem o oposto dessa coisa ingênua. É fruto de motivações muito menos simplórias. É fruto de pesquisas. Aliás, a História da Arte é repleta desta palavra, “pesquisa”. Portanto, não é possível ter gosto e ter razão ao mesmo tempo, se o assunto é arte, estética. Pode-se discordar completamente, mas neste caso há fundamentação, argumentos. Waldemar Cordeiro, um dos maiores artistas plásticos brasileiros do século 20, disse que “A arte se diferencia (…) das coisas ordinárias porque é pensamento.” (“O Objeto”, São Paulo, 1956) Vai-se discutir com uma autoridade no assunto para concordar com quem não é?
Não há nenhum problema que as pessoas gostem do que quiser. Mas é um autoengano — e isso pode e deve ser discutido! — chamar de arte o que não é arte. É só um produto parecido com ela.