Na manhã de 18 de julho de 1994, Buenos Aires foi palco de uma tragédia que marcou profundamente a cidade e o país. Às 9h53, a sede da Associação Mutual Israelita Argentina (AMIA), fundada exatamente cem anos antes, em 11 de fevereiro de 1894, foi alvo de um ataque que tirou a vida de 85 pessoas.
Este foi um dos muitos episódios dolorosos que a Argentina enfrentou, mesmo após a restauração da democracia, em um país que ainda tentava superar as cicatrizes deixadas por um regime ditatorial brutal que se estendeu de 24 de março de 1976 até 10 de dezembro de 1983.
Essa ditadura, iniciada com a queda da viúva de Juan Domingo Perón, Isabelita, resultou em sete anos de repressão, dos quais o país emergiu sob o peso da exigência popular por um governo democrático, após a exaustão do autoritarismo liderado por Leopoldo Galtieri.
Em “Descanse em Paz”, thriller argentino do diretor Sebastián Borensztein desvia o foco dos grandes eventos históricos para explorar as tragédias pessoais que se desenrolam na intimidade. O filme mergulha na vida de um homem comum, cuja trajetória é marcada por arrependimentos, vergonha, cobiça e remorso, elementos que contaminam suas relações mais próximas.
A narrativa, baseada no livro “Descansar en Paz: ¿Nunca Soñaste con Dejar Todo y Empezar de Nuevo?” de Martín Baintrub, publicado em 2018, é uma adaptação cuidadosa de Borensztein, Baintrub e Marcos Osorio Vidal.
Eles tecem uma história onde a dor de um indivíduo é tão intensa que se transforma em um legado sombrio para aqueles ao seu redor. Este personagem central, interpretado por Joaquín Furriel, é um exemplo do dilema humano entre a vontade de fazer o que é certo e a escolha de seguir um caminho tortuoso.
O filme aborda a difícil tarefa de aceitar o outro, não como gostaríamos que ele fosse, mas como ele realmente é. Essa aceitação, porém, é acompanhada pelo desejo silencioso de que a pessoa mude, de que se arrependa e adote uma nova postura. Entretanto, ao mesmo tempo, devemos nos vigiar para não cairmos na armadilha do julgamento e da intolerância.
O esforço para entender o próximo, oferecer palavras de apoio, ou mesmo um gesto simples de bondade, pode exigir de nós um sacrifício que se assemelha a uma longa jornada interior. Nessa viagem, confrontamos as partes mais obscuras de nosso próprio espírito, o que nos dá a capacidade de compreender melhor os outros.
A condição humana é inerentemente complexa, constantemente envolta em uma rede de dilemas e desafios, dos quais só conseguimos nos libertar ao mergulhar nos aspectos mais profundos de nossa alma. Este processo, no entanto, revela uma verdade inevitável: o ser humano sempre busca alguém que o resgate de sua desgraça, e é justamente nesse anseio por salvação que também reside sua possível redenção.
Sergio Duyán, o protagonista da trama, encontra-se em uma situação de risco. Borensztein retrata-o como um homem preso em sua própria incapacidade de crescer e se adaptar, algo que Furriel captura com maestria ao longo de todo o filme.
Sergio parece estar preso, não apenas pelas dívidas que acumulou, mas pelos muros que ergueu ao seu redor, protegendo-se dos golpes da vida. Apesar de suas dificuldades financeiras, ele decide organizar uma festa de Bat Mitzvá para a filha, talvez como um último esforço para manter as aparências e afastar os rumores sobre sua falência iminente.
Ninguém ao seu redor, nem mesmo sua esposa Estela, interpretada de forma excelente por Griselda Siciliani, desconfia do colapso que se aproxima. A história, então, toma um rumo inesperado quando Sergio desaparece no Paraguai, assistindo passivamente à destruição de sua antiga vida por um personagem desprezível. No entanto, ao fim, o espectador pode se questionar: ele mereceu tudo isso?
Filme: Descanse em Paz
Direção: Sebastián Borensztein
Ano: 2024
Gênero: Drama/Mistério
Nota: 8/10
