A primeira etapa para que se possa exterminar uma pessoa é remover-lhe o menor laivo de humanidade. Depois que isso acontece, torna-se muito mais fácil passar por cima de quem quer que seja, como se aquilo fosse uma erva daninha, um verme que precisa ser eliminado pelo bem da coletividade, que ironicamente passa a ser bem menos plural, apenas o reflexo do lado que se impôs, venceu e agora dá as cartas. Entre 7 de abril e 15 de julho de 1994, os hutus, o grupo étnico majoritário de Ruanda, decidiu que os tútsis, que compunham um outro estrato social do país, eram baratas, e, em sendo assim, teve início um dos mais degradantes genocídios do século 20, uma carnificina que levou à escala de desalento, pobreza e fome de um país já falto de tudo, e segue, passados trinta anos, cheia de pontos a serem esclarecidos.
É o que Terry George faz em “Hotel Ruanda”, um apanhado geral do que devem ter sido aqueles 98 dias de tensão, ao longo dos quais um homem emergiu como uma voz clara em meio a algaravia de gritos de pavor, urros de cólera, projéteis varando os corpos dos civis que se amontoavam pelas ruas de Kigali, a capital ruandesa. O texto de George e Keir Pearson vai iluminando a figura de Paul Rusesabagina, o gerente do Hôtel des Mille Collines, que por mais de três meses foi o refúgio possível para 1.268 pessoas, dando a ele a exata dimensão do que fora aos olhos do mundo no coração daquelas trevas.
Poucas vezes na História a diplomacia e a capacidade de persuasão de um funcionário de hotel tiveram tanta importância quanto em Kigali. Até hoje, orbita na esfera do mistério a verdadeira motivação do levante hutu. A bagunça institucional promovida pelo governo de Juvénal Habyarimana (1937-1994), hutu, degringola na insurreição da Frente Patriótica de Ruanda (FPR), em 2 de outubro de 1990. Até 4 de agosto de 1993, ninguém sabia ao certo de que maneira terminariam as hostilidades, e a dúvida tinha razão de ser. A assinatura dos Acordos de Arusha, com vistas a dividir o poder, não surte o efeito desejado, e onze meses mais tarde, quando o avião em que Habyarimana viajava foi abatido, estão reunidos todos os elementos para a eclosão da guerra civil. Rusesabagina entra primeiro como um personagem secundário; paulatinamente, ele; a esposa, Tatiana; os filhos Roger, Diane, Lys e Tresor; o cunhado Thomas e a esposa, Fedens; além das sobrinhas, Anais e Carine, experimentam na pele o que é ser um exilado na própria pátria, reduzida ao saguão do Milles Collines e alguns poucos aposentos. Don Cheadle e Sophie Okonedo dão alma a um filme cuja aura eminentemente sangrenta o diretor esconde em diálogos certeiros, sem que se perca do que “Hotel Ruanda” trata. Mas aqui a civilização vence a barbárie.
Filme: Hotel Ruanda
Direção: Terry George
Ano: 2005
Gêneros: Drama/Thriller/Biografia
Nota: 8/10