Assistir ao filme “É Assim que Acaba” no cinema é uma experiência coletiva. Apenas raras vezes isso acontece. Aconteceu de forma mórbida com o clássico “O Exorcista”, em 1973, com a plateia desmaiando e gritando de medo, e aconteceu de modo festivo com “Vingadores: Ultimato”, em 2019, com batalhões de nerds urrando empolgados com o Capitão América erguendo o martelo do Thor e surrando o genocida Thanos. Voltou a acontecer de forma emocional e pedagógica com “É Assim que Acaba”, sucesso de 2024, baseado no romance best-seller de Colleen Hoover. O público, grande parte formado por leitoras do livro, participava fisicamente das cenas, comentando-as em voz alta, emocionadas ou indignadas, muitas vezes puxando conversa com totais desconhecidas sentadas na poltrona ao lado. Foi bonito de ver. Não pela qualidade duvidosa do filme, mas pela importância de seu tema: a violência doméstica e o abuso psicológico.
A maioria do público era composta por mulheres. Na minha sessão, e parece ser a regra, algo em torno de 95%. Aqui e ali se via alguns amigos acompanhando alegremente suas amigas e namorados, noivos ou maridos, aparentemente pouco satisfeitos, acompanhando namoradas, noivas e esposas. Em alguns casos, é bem possível que a carapuça tenha servido, o que explicaria certas caras amarradas. Imagino que muitos desses incautos acompanhantes foram ao cinema achando que iriam apenas ver um chatinho “filme de mulherzinha” para agradar a “patroa”, um desses romances melosos que poderiam ser vistos na Netflix no conforto do lar, e acabaram se deparando com verdades inconvenientes. Bem feito! Parabéns para essas namoradas, noivas e esposas que usaram o método Hamlet de “jogar na cara”.
O livro “É Assim que Acaba” é baseado em experiências familiares da autora. Até onde pude constatar, examinando algumas resenhas, Colleen Hoover não é uma escritora caracterizada pelo apuro estético ou profundidade psicológica dos personagens. Seria menos Virginia Woolf e mais Danielle Steel. Não li o livro, então não posso atestar suas qualidades ou deméritos literários, mas me parece evidente que ela criou um fenômeno cultural em torno de sua obra. Muitas pessoas que leram “É Assim que Acaba” saíram impactadas. Gerou debates, movimentou fóruns de discussão e clubes do livro por todo o mundo. O tema abordado precisava ter uma porta-voz com alcance popular e, independentemente dos méritos da narrativa, encontrou essa figura em Colleen Hoover. Em se tratando de denúncias, antes um best-seller pasteurizado para expor a ferida do que um calhamaço sofisticado e pretensioso que ninguém lê.
Com toda essa base de fãs, a adaptação cinematográfica foi bastante esperada. O filme conta a história de Lily Bloom (sim, é esse mesmo o nome, o que gera uma piada no filme), uma florista que conhece o bonito, inteligente, rico e sarado neurocirurgião Ryle Kincaid, logo após a morte do pai, que descobrimos ao longo da narrativa que era violento com sua mãe. Lily e Ryle tornam-se amigos, depois namorados, noivos e se casam. Durante esse processo, aspectos sombrios da personalidade de Ryle afloram. De príncipe encantado, em uma escalada, ele se revela abusador, ciumento patológico, possessivo e violento. Lily enfrenta a situação em um intenso conflito interno, algumas vezes se recusando a acreditar no que está vivendo, perdoando, evitando denunciar, tentando outra vez, repetindo o ciclo.
Para complicar tudo, ressurge em sua vida um amor do passado, o chef de cozinha Atlas Corrigan. Atlas, o homem que carrega o mundo nas costas, percebe o que está acontecendo com Lily e interfere, confrontando Ryle, que obviamente dá uma de machinho ofendido até levar uns bons tabefes para deixar de ser besta. Achei surpreendente certas reações de pessoas indignadas com Atlas “metendo a colher” onde não foi chamado.
Como não poderia deixar de ser, ocorre um “plot twist” com Lily engravidando do marido. Nasce uma menina. Esse fato leva ao elemento simbólico presente no título do filme: está na hora de acabar com o ciclo que vitimou mãe e filha. O desafio é fazer com que não chegue à neta. “É Assim que Acaba” não é uma boa tradução para “It Ends With Us”. Uma opção mais precisa seria “Isso Acaba Aqui”.
Muito do enredo esbarra nas fórmulas consagradas do melodrama, inclusive com o surgimento inesperado de um paladino pronto para salvar a donzela em perigo. Fórmula fácil de best-sellers genéricos de aeroporto. Ainda mais reprovável é o aparecimento de uma pretensa justificativa psicológica para os atos de Ryle. Um tipo de efeito borboleta que parece querer relacionar um trauma de infância com o desejo criminoso de abusar física e psicologicamente de mulheres. Um tipo de “tadinho dele, foi uma criança sofrida!”. Muita gente na plateia comprou a ideia e fez questão de expressar isso em voz alta. Na prática, o argumento era de que Ryle devia ser perdoado, primeiro por ter se arrependido, pedido desculpas e prometido nunca mais repetir o que fez (se Lily se comportar, suponho), segundo por ter se tornado pai, terceiro por ser um neurocirurgião bonito, inteligente, rico e sarado.
O filme suavizou bastante o livro, o que pode atrapalhar a efetividade da mensagem. Certamente foi uma opção comercial de Blake Lively, estrela e produtora do filme. O objetivo básico foi realizar uma adaptação funcional e literal do livro, que pudesse satisfazer a base de fãs. Em seguida, atingir plateias mais amplas que talvez não tivessem estômago para suportar mais do que foi mostrado. Não duvido que essa suavização ajuda a explicar por que fatia tão grande do público tomou as dores de Ryle. O sempre lamentável argumento de “não foi tão ruim assim, dá para perdoar”.
O filme em si é medíocre. A fotografia, trilha sonora, direção de arte e figurino são convencionais, não ofendem, também não se destacam. O diretor Justin Baldani, que também interpreta Ryle de modo francamente canastrão, entrega um trabalho pouco inspirado. “É Assim que Acaba” parece uma produção feita diretamente para a televisão. Blake Lively, interpretando Lily Bloom, usa seu carisma habitual para gerar conexão entre público e personagem. Apesar da direção fraca, consegue algum resultado. Isabella Ferrer e Alex Neustaedter entregam boas atuações como as versões jovens de Lily e Atlas. Amy Mortonsabe ser chata na medida certa como Jenny, irmã de Ryle e alívio cômico do filme. Hasan Minhaj, interpretando Marshall, marido de Jenny, não passa de uma caricatura. O destaque do elenco fica para Brandon Sklenar, intérprete de Atlas. O ator tem carisma, aparência e potencial dramático para tornar-se uma estrela.
Por fim, “É Assim que Acaba” é um filme que deve ser visto menos como obra de arte e mais como peça de educação sentimental. Se o filme não é necessariamente bom, por outro lado, seu conteúdo e sua mensagem são absolutamente necessários. Perdoem o melodrama e a produção pouco inspirada, foquem na mensagem, não no mensageiro. Talvez no futuro tenhamos uma obra-prima tratando do tema. Por enquanto, temos “É Assim que Acaba”. Está longe de ser perfeito, comete o grave erro de ser condescendente com Ryle, que não recebe nenhuma punição; mas até isso, com alguma boa vontade, pode ser visto como um retrato da realidade dos abusadores, que raramente são punidos na vida real. Levem seus amigos, namorados, noivos e maridos. São eles que mais precisam assistir. Se não gostarem, não importa. O rei Claudius também não gostou de assistir à peça montada por seu sobrinho e enteado Hamlet, representando o assassinato de seu pai pelo próprio irmão. Se havia algo de podre no reino da Dinamarca, há algo de podre nas relações humanas na civilização ocidental contemporânea. A questão do abuso é o grande tema civilizacional do século 21.
Assistir a “É Assim que Acaba” no cinema é uma experiência coletiva. Não há possessões demoníacas, nem super-heróis empunhando armas mágicas, mas seu conteúdo é humano, demasiado humano. Por isso, tão falho.