Todos conhecemos algum Otto Anderson. Prova disso é que “O Pior Vizinho do Mundo”, a comédia dramática de Mike Forster sobre um viúvo septuagenário que parece ferido de morte sempre que vislumbra o mais remoto indício de felicidade em quem ousa aproximar-se dele. E não é por acaso. O roteiro de David Magee procura não fugir das indicações de Hannes Holm, o diretor de “Um Homem Chamado Ove” (2015), a história original, por seu turno baseada no romance homônimo que o sueco Fredrik Backman lançou em 2012.
Esticando-se um pouco a corda, poder-se-ia dizer que o filme de Forster tem pontos de contato meio suspeitos com “Eu, Daniel Blake” (2016), dirigido por Ken Loach, ou “As Confissões de Schmidt” (2002), levado à tela por Alexander Payne, mas Tom Hanks, como sempre, encarrega-se de botar um freio nas comparações. Hanks empresta tamanha sutileza à adorável ranzinzice de Otto que já nos primeiros minutos ninguém mais se lembra de qual foi mesmo o viés a que Rolf Lassgård escolheu dar preferência para compor o personagem no longa de 2015, e a partir daí essa versão da história passa a fazer sentido.
Decerto a cena que melhor define Otto Anderson é aquela que o mostra zanzando pela Busy Beaver do quarteirão até encontrar o que precisava. Ele já vai tirar seu metro e 65 de corda — preste atenção a esse número e a esse objeto —, mas é interrompido por um jovem vendedor, que se oferece para cortá-la para ele, e, claro, é repelido. Minutos depois, o mesmo funcionário o vai atender no caixa, e arma-se uma confusão: Otto não aceita pagar por dois metros de corda só porque o computador não fora programado para fazer contas fracionadas.
Se querem saber, Otto está com a razão. Hanks e John Higgins oferecem ao público desempenhos na justa medida de comicidade e angústia, o que serve de ensaio para as muitas outras surpresas entre desagradáveis e comoventes que o protagonista saca da cartola. Forster abusa das sequências em que Otto faz uma tal ronda pela rua esquisita em que mora, fechada para carros depois que uma construtora com o jocoso nome de Dye & Merica coage os moradores com ameaças de despejo, mesmo os proprietários, que vivem ali há décadas, e nesse embalo entram em cena Marisol Mendes, a nova inquilina da casa em frente à do guardião da vizinhança, e sua família.
Mesmo aqueles que não assistiram ao filme de Holm ou leram o romance de Backman sabe muito bem aonde vai levar a relação de Otto e Marisol, mas quem se importa? O diretor contrabalança a melancolia dele com a genuína profissão de fé na humanidade dela, e a mistura fica cada vez melhor, porque Forster não perde de vista o que importa. Aqui e ali, Otto é mostrado firme em seu propósito em atentar contra a própria vida, o que sempre acaba ou em forros quebrados ou aparições mediúnicas de Sonya, a esposa já falecida que não o abandona — malgrado seja ele o espírito atormentado.
Os flashbacks do jovem Otto, desde antes do primeiro encontro com a futura companheira até o acidente de ônibus que a deixa paraplégica e infértil depois da perda do filho que esperavam, têm um quê a mais de magia num enredo eminentemente fantástico, mas cru. Truman Hanks, filho de Hanks, e Rachel Keller, acrescentam lirismo nas horas em que o velho parece determinado a estragar tudo, estabelecendo a perturbadora conexão do livre-arbítrio à vontade de Deus (ou do diabo) por meio de planos-detalhe da edição de “O Mestre e Margarida” (1967), de Mikhail Bulgákov (1891-1940).
Se o fogo do inferno ronda Otto, o bem desinteressado, persistente e implacável também não lhe dá sossego. Marisol, talvez uma Sonya sem vínculos carnais, não desiste dele, entrega-lhe vasilhas com pollo con mole e salpores de arroz, e ele, afinal, começa a ceder. Mariana Treviño é uma grata surpresa, e a amizade dessa mãezona com aquele sujeito desagradável acaba, enfim, por transformar Otto e muito do universo ao seu redor, que ele fazia questão de ignorar, com direito a novos afetos, o de um garoto trans, o dos conhecidos que já tinha por tragados pela bruma corrosiva do tempo e o de um gato de rua, arisco e doce como ele, que só precisava do calor de um coração soterrado pela neve. Mas doido para sonhar com o amor outra vez.
Filme: O Pior Vizinho do Mundo
Direção: Mike Forster
Ano: 2023
Gêneros: Comédia/Drama
Nota: 9/10