Mulheres podem se expressar da forma como bem entenderem, desde que seja aquela imaginada, e, o principal, aceita pelos homens. Pela advertência espalhafatosa da introdução, Sam Levinson deixa a audiência prevenida sobre o que esperar de “País da Violência”, uma distopia onde perseguição misógina, racismo, supremacia ariana, homofobia, fanatismo religioso, linguagem de baixo calão, violência sexual e todo o gênero de miséria humana toma forma diante de nossos olhos entre espavoridos e quase orgulhosos da inventividade corajosa do diretor-roteirista, que vai comendo pelas beiradas até atingir seus alvos.
Lily, a aspirante a artista da irretocável Odessa Young, passa a ser o destino de boa parte do despeito e do rancor de uma facção ultranacionalista que afinal sai dos tugúrios e floresce em Salém, cidadezinha muito propensa a acomodar essas excrescências da democracia que tanto têm incomodado a América pensante. Essa anti-heroína desce às profundezas do mal que se disfarça de pudor, castidade, honra, dispondo da cumplicidade de um aliado feito sob medida para dar asas ao voo de covardes e malucos.
Aos dezoito anos, Lily desfila pelas ruelas cinzentas de Salem em microshorts que fazem-na parecer mesmo só um pedaço de carne numa liquidação de açougue de subúrbio, mas aos poucos Young vai emprestando à personagem uma boa medida de doçura. A garota quer apenas fazer seus desenhos, retratos da hipocrisia que já pode enxergar em sua vizinhança briosa de sua alienação, e desse eixo Levinson não se afasta. Numa das vezes em que é pega esboçando moças nuas em poses um tanto vulgares, vai parar na sala do diretor Turrell, de Colman Domingo, e só sai de lá depois de lhe prometer que irá fazer um esforço sincero quanto a empenhar seu talento — que nunca foi em empecilho para boas notas — em outras atividades. Ao cabo dessa exposição inicial da protagonista, o diretor passa a ao segundo ato, explorando a comunicação secreta de Lily com um certo Daddy, um homem mais velho de quem recebe mensagens fesceninas que responde com selfies provocantes, e então a grande bomba do filme explode. Um maníaco escrutina os passos virtuais de toda Salem, vitimando primeiro o prefeito, um conservador de extrema-direita que tinha por hábito sair com outros homens usando lingerie. Não demora e também Lily cai, sem o apoio dos pais, que expulsam-na de casa, e despertando a ira dos outros lobos em pele de cordeiro.
Mesmo diante de um tema tão árido, Levinson mostra-se um esteta e um homem culto. É admirável a maneira como se apropria de fenômenos da cultura pop, a exemplo de “O Conto da Aia”, o romance neoapocalíptico da canadense Margaret Atwood publicado em 1985, recentemente adaptado na série de mesmo nome, e “Sob o Domínio do Medo” (1971), de Sam Peckinpah (1925-1984), que cita textualmente. Como fez Atwood, Levinson faz de “País da Violência” um tratado sobre a estupidez, a burrice, o cinismo e o péssimo hábito que certas pessoas têm de se julgarem superiores por não admitirem a dissidentes num regime cuja definição, até segunda ordem, é justamente essa. Excrescências da democracia que agora mostram-se sem pudores, com fome de atávicas reparações.
Filme: País da Violência
Direção: Sam Levinson
Ano: 2018
Gêneros: Drama/Suspense
Nota: 8/10