Cada um aproveitava o ócio da forma que lhe convinha. Eu tinha tomado meia garrafa de vinho. Pensamentos acelerados. Enquanto matava o tempo exterminando mosquitos-de-banana, conclui que havia cometido incontáveis erros de avaliação ao longo da vida. Deslizes mesmo. Dei um milhão de ratas. Para início de conversa, pensei que os bebês nasciam pelo ânus. Sem trocadilhos: estava redondamente enganado. Era pior do que acreditar em cegonha. Nem bem aprendi a engatinhar, pus na boca uma gilete que vovô Vicente, o bisa paterno, deixou cair de propósito no chão do banheiro. Papai, que já andava pistola com o velho pelo fato dele dar cusparadas pela casa para que vovó limpasse, por muito pouco, não bota o porcalhão no olho da rua. Pensei que tomada elétrica fosse focinho de porco e enfiei um grampo nela. Sobrevivi à descarga elétrica, ao choque que mamãe sofreu quando notou a luz da lâmpada oscilando enquanto corria até a caixa de disjuntores. Certa vez, ainda garoto, um pouco mais crescido e menos ajuizado, despi-me. Fiquei completamente nu em frente ao espelho do banheiro, enquanto ludibriava mamãe de que tomava um banho. Tinha uma certa incompatibilidade com água naquela época. Por mera curiosidade, virei-me de costas para o espelho. Espiei sobre o ombro. Apreciei o próprio bumbum. Coisas de menino, sabem como é. Pensava que o traseiro da gente fosse partido ao meio, até as entranhas. Tipo quando se partia uma melancia, se é que me entendem. Qual foi a minha surpresa quando, ao afastar as nádegas com as mãos miúdas, deparei-me com um orifício tímido e rosado. Achei que houvera nascido com um aleijão. Fiquei perplexo, desesperado, chorei e, claro, fui parar nos braços da minha dileta genitora que, naquela época, pagava os pecados lecionando como sofressora, ou melhor, lecionando como professora do Ensino Fundamental numa escola pública. Fundamentalmente, sempre que a situação apertava, eu recorria à mamãe. Ela era o meu porto seguro, exceto, no litoral sul da Bahia. Mamãe sabia de tudo um pouco. Explicou que todo mundo tinha o ânus no formato de um furo. “Por quê? Ora, porque Deus fez a gente assim e pronto…”, concluiu, meio impaciente. A velha me apoiava nos momentos mais difíceis. Como naquela vez que ejaculei sangue. A primeira blenorragia a gente nunca esquecia. Tinha adentrado na puberdade e procurei sozinho um médico. Doutor Epaminondas, aquele desgraçado, propôs que eu me submetesse a uma tal terapia de massagem prostática. Era batata, pá-buf, certeza de cura. “São apenas vintes sessões, meu jovem”, comentou o desgraçado com o fura-bolo em riste. Com o auxílio da minha mãe, troquei de urologista e me curei com garrafadas, com tempo e com antibióticos. Desculpem-me. Avancei rápido demais na linha do tempo. Preciso me delongar mais sobre a minha meninice. Entendam: eu era uma criança muito infantil. Um dia, enquanto voltava de um velório no banco traseiro da Kombi, li a palavra “Buceta” pichada num muro. Perguntei ao meu velho o que significava. Ele olhou para mamãe, pensou em sorrir, mas, não o fez. Com paciência professoral explicou-me que “Buceta” era uma palavra chula, feia, utilizada por marginais e por pessoas mal-educadas, para se referir àquela região do corpo feminino utilizada para fazer xixi e para parir filhos. Fiquei impressionado. À primeira vista, supunha que “Buceta” tivesse o mesmo sentido de “Viva!”, por exemplo, uma espécie de grito de guerra, de comemoração de vitória. Papai ficou enfezado por ter que fornecer explicações a respeito de temas escatológicos e me instruiu para nunca mais repetir aquela palavra na frente de outras pessoas, principalmente, na frente da minha irmã. Consegui manter a promessa durante um bom tempo, até adentrar na puberdade e descobrir outra função fisiológica importante daquela úmida e calorosa estrutura anatômica. Moléstias. Passei a me interessar pelas moléstias. Cultivei medo pela maior parte delas. Beirava a hipocondria. Pensava que se pegava gonorreia na tampa do vaso sanitário. Que camisinha era apenas o diminutivo de camisa. Que punheta enlouquecia. Aliás, quem afirmou que masturbação lesava a mente dos meninos foi Pedro, o professor de Ciências do quinto ano, no Colégio Marista. Como é que eu ia duvidar dos ensinamentos de um professor de Ciências que eu tanto admirava e respeitava, ainda mais, quando ele nos alertava sobre o iminente risco de demência irreversível, escoltado pela Irmã Amarílis, a coordenadora pedagógica, uma freira mal-encarada, de origem alemã, que usava óculos fundo-de-garrafa, hábito ensebado e um par de galochas brancas. No caso das punhetas, não tive culpa, eu era um inocente. Fui induzido ao erro, durante muito tempo: cinco dias exatos até sair a nova edição da “Revista Playboy”. Não parei por aí com os meus equívocos. Cheguei a pensar que cédulas de dinheiro transmitiam doenças graves. Que as pessoas com mais de cinquenta anos de idade eram velhas. Que quem gostava de velho era reumatismo. Acreditava piamente que homem não chorava. Em matéria de cometer erros de avaliação, fui piorando com o tempo. Na pior fase da boçalidade, cheguei a supor que depressão fosse frescura. Que podia ser jovem para sempre. Que eu sabia tudo. Que meus pais não faziam sexo. Que mamãe, aquela santa, não tinha orgasmos. Que existia um céu e que eu, não apenas entraria nele, como o faria de forma triunfal, ao ser recebido por Jesus Cristo, em pessoa, e ser ovacionado por uma banda de pífanos. Quanta besteira. Vivendo, errando, esquecendo e errando outra vez. O meu deslize mais recente foi descobrir que o cantor canadense Michael Dublê, na verdade, chama-se Michael Bublé. Outro erro crasso, patético. Poderia ter me delongado mais sobre esse assunto, contudo… Cansei das minhas histórias. Além do mais, estava embriagado. Enfileirei dezessete cadáveres de moscas-de-banana sobre a toalha de mesa da copa. Assassinar insetos. Quem diria. Era muita falta do que fazer. Que outras arbitrariedades eu ainda cometeria, no auge da quinta década de uma vida permeada de enganos? Eu tinha que descontar as minhas frustações de alguma forma. Quem pagou o pato foi a mosquitada que sobrevoava a fruteira da copa. E eu não sentia nem um pouco de culpa por isso.
Cagadas
Eberth Vêncio
Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a Revista Bula há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente Bipolar, uma antologia de contos e crônicas.