Para contar bem uma história é preciso maestria e também muita mentira. A literatura exige que o contista seja um bom contador de estórias e histórias, mas também, e para alguns essencialmente, que a linguagem tenha prevalência. Solemar Oliveira se esmera nesses dois critérios em “As Casas do Sul e do Norte”, livro de contos ganhador da Bolsa de Publicação Hugo de Carvalho Ramos, o mais antigo prêmio literário brasileiro, de 2021, predicados que já havia mostrado em “Breve Segunda Vida de uma Ideia”. Ele não é apenas bom contista, mas também romancista de estirpe, que já construiu uma trajetória carente apenas de maior divulgação e acolhimento e isso não é pouca coisa em se tratando da literatura feita em Goiás.
Nos 14 contos de “As Casas” Solemar atiça o leitor com as filigranas de saborosas histórias, que adentram universos de realidade e de sonho e o fazem navegar procelas e tsunamis sem medo, apenas com o condão de aguçar expectativas até a chegada ao porto seguro do enredo que o deixa quase sempre boquiaberto, pela imprevisibilidade que vive mergulhada na fantasia. Aí, Solemar é escritor de filosofia cara, deixando-nos muitas vezes com a certeza de que lê-lo faz um bem danado às nossas tentativas de sair da mesmice.
Na vida real, todos nós e a ciência tentamos combater o esquecimento que nos chega com aquele alemão escroto do esquecimento, mas um personagem do conto que dá título ao livro faz irônica gozação com o Alzheimer: “Ultimamente tenho tentado desenvolver uma técnica para o esquecimento. Treino sistematicamente uma rotina que estou testando. O objetivo é me livrar dos episódios, tanto recentes quanto do meu passado mais distante, que me fizeram sofrer de uma forma terrível”. Ou também quando não é a pessoa que observa as pedras, mas as pedras que estão de olho no que a pessoa faz e isso leva o personagem narrador a conversar com elas.
A prosa dele é uma constante de passagens inusitadas, fantasiosas e instigantes, que fazem bem a quem gosta de degustar na literatura o que ela carrega de melhor. Faz o leitor pensar, refletir e também se divertir. Com propósito, seja para atrair a atenção do leitor ou sugar da estória o que ela tem de insinuante, para superlativizar a literatura ali contida, o autor se esmera em construir cada parágrafo com uma maestria peculiar, com uma sabedoria decisiva para os mais atentos pensadores e por isso mesmo não passa despercebido esse enleio. Ele traduz um pensamento que criei aqui agora: Quem não fantasia, não se extasia.
É aquele tipo de livro onde o leitor só tende a ganhar, porque o escritor é astucioso no manejar das palavras e ideias, se esmerando em ironias, fantasias e situações onde o esdrúxulo parece normal e vice-versa. Não à toa chamou a atenção dos jurados da Bolsa Hugo, porque denota a forma como ele navega em temas quotidianos com a maestria de fazê-los perspicazes e até mesmo inusitados. Solemar não tem incursões pela poesia, até onde se sabe, mas faz poesia o tempo todo em sua prosa, senão vejamos um trechinho aqui: “Quando abriu, o pequeno pássaro cantou e foi como se pedisse, em seu estridente lamento, uma porção de esperança”.
É um bálsamo a prosa poética de Solemar, especialmente porque em momento algum seus personagens temem cancelamentos, ou melhor, o autor é exímio em incentivar essa pegada quando narra as façanhas de seus personagens. Isso é gostoso e engrandece a escrita, faz dele um autor completo, com sua supitante característica da ousadia. Isso o coloca em um patamar elevadíssimo aqui nesta terra brasilis. Quando solicitado a declamar um poema que falava da personagem com a qual dialoga, ele tasca “O casebre desbotado”, que é de um amor que ao final o expulsa da casa do Norte, onírica casa, mas que segundo ela o preço é muito alto para se viver ali.
Não deixes que desmorone
a ideia e nem deixes
que transborde da tua boca
o mel que destilas, solitária.
Tampouco guarde tua doçura
para os malditos lábios
que não te merecem.
(…)
E do teu amor
permaneceram os lampejos do Sol
e o som salgado do mar.
(…)
Afogam-te, delicadamente,
devolvendo-te
ao teu verdadeiro lar.
E daquele amor
todo impuro,
pecaminoso,
pervertido,
tua redenção,
teu grito,
Dolorosamente seco
e sufocado de alívio.
A existência do mundo inteiro
num ínfimo instante
E nele teu infinito.
Trago aqui, para exemplificar muito do que disse, um trecho do conto “A vermelha paisagem da herança”, onde, a certa altura, Almeidinha, personagem, contempla o seu abismo e sente medo e assombro, “mas adorou aquele sentimento, deslumbrou-se com a inevitabilidade do desastre, sentiu amor pela fatalidade, percebeu a grandeza de sua fraqueza, pois nela residia a sua potência. Sentiu o quanto seu desejo era imoral. Morrer é um encontro”
Solemar é um dos grandes escritores brasileiros da atualidade. Ele pode ter modéstia para assumir isso, mas eu não tenho para reconhecer. Há muito mais para se extrair e dizer de “As Casas do Sul e do Norte”, mas não o faço para deixar ao leitor um gostinho de quero mais. Para seu próprio bem, compre uma casa, seja no Sul ou no Norte, para que você, leitor, possa morrer em paz ou viver esse nosso desastre dia após dia.