É curioso observar como o homem mudaconforme avança o tempo, bem como também causa espécie que nossa natureza mesma reforja-se de acordo com o sem fim de revoluções tecnológicas que seguimos experimentando, mormente no último quarto de século. Mais instigante é notar, muito de perto, a relação destacadamente idiossincrásica que certas pessoas desenvolvem com suas bugigangas eletrônicas, e é nessa frequência que o espanhol Santiago Requejo trabalha em “Não Posso Viver sem Você”, uma comédia leve, mas reflexiva, acerca dos prazeres e pesares da vida online.
Arguto observador das transformações sociais que todos vivemos em algum grau, Requejo trata da maravilhosa e incômoda onipresença dos celulares pelo olhar de um executivo que não consegue desligar e, claro, acaba sofrendo de todos os males que a tecnologia acarreta quando passa do limite, centrados no que a ciência definiu como nomofobia, o pânico de ver-se sem acesso a dispositivos eletrônicos móveis. O roteiro do diretor, coassinado com José Gabriel Lorenzo, pula de uma situação para a outra ao passo que alinhava os diferentes cenários em que a neurose do protagonista se declara, separando uma boa solução para o merecido final feliz.
Como se dá em todo comportamento maníaco, a mera suspeita de que o aparelho tenha sumido é o bastante para desencadear uma pequena crise de ansiedade em Carlos, interpretado por Adrián Suar com a dose precisa de humor e drama. Adela, a esposa, planeja fazer uma longa viagem romântica com o marido, agora que os filhos vão estudar fora, mas ele nunca sabe se estará disponível, afinal há sempre um relatório a ser entregue a Alejandro, o chefe vivido por Ramón Barea, e na correria para o trabalho, entre uma e outra mensagem perdida por causa da conexão instável, aparece-lhe a saída milagrosa, um certo Daiafon 17, uma maravilha nanotecnológica que reúne todos as últimas descobertas da inteligência artificial num design moderno e pleno de luzes hipnóticas, promessa de limpar sua gaveta cheia de carregadores velhos e imprestáveis.
Como se poderia imaginar, a insensibilidade cibernética sobrepuja o homem em seus aspectos mais íntimos, e não só não há viagem como também não há mais casamento. A compulsão, que o leva a desbloquear o telefone 270 vezes a cada quatro minutos, e a sufocar numa taquicardia feroz quando a bateria está abaixo dos 72%, implica num grupo de psicoterapia em que conhece outros pobres obcecados feito ele, sua derradeira oportunidade de ter sua vida de volta. O diretor estabelece a ligação desses dois momentos com toda a segurança, impressão que Paz Vega também passa a quem assiste. Um recomeço na Cafeteria Lumière, às oito, diz a Carlos e a nós que podemos viver sem eles, os celulares, laptops, tablets e que tais — nem que seja nas horas de maior ventura.
Filme: Não Posso Viver sem Você
Direção: Santiago Requejo
Ano: 2024
Gêneros: Comédia/Romance
Nota: 8/10