A condição da mulher nas sociedades contemporâneas talvez seja o símbolo mais bem-acabado quanto a demonstrar na prática as transformações pelas quais passamos no último meio século. Se até meados dos anos 1970 ver uma mulher em cargos de chefia era como deparar-se com um marciano típico, verde e com antenas brilhantes, hoje não existe nada mais banal que verificar que por trás de megacorporações, do comércio varejista aos bancos públicos, existe um par de sapatos de salto alto, batom e terninhos de grife adornando inteligências privilegiadas. As mudanças estruturais alicerçadas em mulheres ao redor do mundo soam como apenas um delírio enevoado se se tem por contraponto o lugar na história de onde saíram e quão longe puderam chegar, à custa de muito esforço e boa dose de autossacrifício.
A personagem central de “A Liga” dá a impressão de saber muito bem o que está fazendo, mas nesse momento de balanço de tudo quanto pôde amealhar ao longo da carreira como agente secreta em oposição ao muito que já perdeu (e continua perdendo) constata que não tem o mais importante. O diretor Julian Farino expõe a alma flagelada de uma mulher sem muito estímulo para crer nas supostas boas intenções de ninguém, ao passo que arruma um jeito de recuperar o tempo ao lado de um ex-namorado que não vê há séculos. O texto de Joe Barton e David Guggenheim desenrola-se em torno de essa figura endurecida, fechada em si mesma, ávida por reaver uma parte vital de sua essência, com a ajuda, claro, de seu grande antigo parceiro.
Paira acima da natureza de toda criatura a verdade inescapável de que a vida é feita de sonhos, e sonhos, por seu turno, desprezam sem cerimônia a lógica, o bom senso, o politicamente correto, ou seja lá de que qualquer outra nomenclatura queiram revestir-se o sistema de freios e contrapesos morais de que toda criatura sob o sol é dotada. Ao passo que nos escraviza a ideia de ordem, previsibilidade, método, perfeição, imagens e raciocínios os mais desvairados, os mais absurdos, perseguem-nos sem clemência, e, quer admitamos ou não, têm lugar cativo no pensamento de todo indivíduo que se recusa a dar por acabada sua interferência no processo civilizatório, uma vez que nunca se sacia o apetite do espírito do homem desde o princípio dos tempos.
A fome do que Roxanne Hall não entende presta-se a, por contraditório que soe, indicar o que vale ou não a pena na busca pela beleza da vida, uma equação que a esmagadora maioria das pessoas não resolve, e pior, a que ainda devota um solene menoscabo, como se só porque seu curto entendimento passa ao largo das questões mais densas da condição humana, elas não existissem. Em seu conto de fadas pós-moderno, Farino junta Roxanne, uma espiã glamorosa e autossuficiente, avisando sobre uma tempestade no mar Adriático e um agente da CIA desaparecido no quarto 620 do Grand Hotel Castelletto, em Trieste, na Itália, e Mike McKenna, um trabalhador da construção civil falido de Patterson, Nova Jersey, ávido por diversão — malgrado nem ele mesmo saiba disso. Halle Berry e Mark Wahlberg têm química o bastante para emular Humphrey Bogart (1899-1957) e Ingrid Bergman (1915-1982) em “Casablanca” (1942), com os papéis trocados. Sem toda aquela sutileza, mas com igual energia.
Filme: A Liga
Direção: Julian Farino
Ano: 2024
Gêneros: Comédia/Ação/Policial
Nota: 8/10