Obra-prima  do cinema europeu baseada em livro de ganhador do Prêmio Nobel,  na Netflix Rolf Konow / SMPSP

Obra-prima do cinema europeu baseada em livro de ganhador do Prêmio Nobel, na Netflix

A trajetória rumo ao sucesso é frequentemente marcada por desafios e adversidades, especialmente para aqueles que iniciam sua jornada em condições menos favorecidas. Esse é o ponto central de “Um Homem de Sorte” (2018), onde os personagens se veem presos em uma luta entre suas aspirações de riqueza e reconhecimento e um sistema consolidado e implacável que resiste a qualquer intrusão. O filme de Bille August explora justamente essa tensão entre mundos distintos, questionando o que leva essas realidades paralelas a colidir.

O enredo, baseado no romance “Lykke-Per” de Henrik Pontoppidan, laureado com o Nobel de Literatura em 1917, mergulha o espectador em um melodrama cuidadosamente equilibrado. Publicado em oito volumes entre 1898 e 1904, o romance de Pontoppidan serve de base para uma narrativa que, em alguns momentos, parece prestes a transbordar em emoção. No entanto, August, cuja filmografia inclui o premiado “Pelle, o Conquistador” (1987), vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1989, demonstra um domínio notável ao saber quando recuar e permitir que seus personagens expressem suas complexas emoções. Embora o tom emocional seja prevalente, o verdadeiro trunfo do filme está na habilidade de August em sugerir sutilezas que, embora não explícitas, são compreendidas intuitivamente pelo público.

A história gira em torno de Peter Andreas, que, movido por uma profunda aversão a seu pai, um rigoroso vigário interpretado por Anders Hove, decide abandonar sua terra natal na península da Jutlândia para estudar engenharia em Copenhague. Ele rejeita não apenas seu passado, mas também seu próprio nome, adotando o apelido de Per, o “sortudo”. Esben Smed, que interpreta o protagonista, entrega uma atuação que vai além do roteiro escrito por August e Anders Frithiof August, mergulhando nas profundezas do personagem e capturando a essência de suas ambições e contradições. A trama se desenrola com a descoberta de uma invenção criada por Per, um mecanismo que utiliza a força do vento e da água para gerar energia elétrica — uma inovação à frente de seu tempo, ainda que limitada ao uso dos mais ricos no início do século 20.

Pontoppidan, ele próprio formado em engenharia antes de se dedicar ao jornalismo, vislumbrou o potencial dessas tecnologias emergentes e suas implicações para o futuro, tanto no que diz respeito à proteção ambiental quanto ao desenvolvimento econômico. Sua narrativa antecipa a ideia de que o controle sobre fontes de energia limpa se tornaria uma peça-chave no poder econômico global. Per, porém, ainda distante desse poder, precisa contar com alianças estratégicas e financiamento para realizar suas ambições.

É nesse ponto que August insere um romance envolto em ambiguidade entre Per e Jakobe Salomon, interpretada com maestria por Katrine Greis-Rosenthal. Jakobe, filha de uma família influente, cede às investidas de Per, mesmo sob o olhar desconfiado de seu pai, que rapidamente percebe as intenções do jovem. A relação dos dois, inevitavelmente marcada pelas diferenças religiosas e sociais — Jakobe é judia e herdeira de uma fortuna, enquanto Per é um cristão pobre e determinado —, parece destinada ao fracasso desde o início.

“Um Homem de Sorte”, na Netflix, é uma obra notável dentro do cinema contemporâneo, especialmente no contexto da rica tradição cinematográfica dinamarquesa. Bille August consegue combinar uma narrativa intelectualmente provocativa, que aborda temas complexos e muitas vezes conflitantes, com uma execução técnica impecável, destacada pela fotografia de Alar Kivilo. A cena de despedida entre Per e Jakobe é um exemplo de como sutileza e impacto podem coexistir, reafirmando a singularidade de cada filme, mesmo dentro de padrões recorrentes. “Um Homem de Sorte” não foge a essa regra, consolidando-se como uma peça importante no cenário cinematográfico atual.


Filme: Um Homem de Sorte
Direção: Bille August
Ano: 2018
Gênero: Drama/Romance
Nota: 9/10