A vida a dois já foi muito mais fácil. Novas conjunturas levam homens e mulheres a trocar de papel e se antes o controle da casa era um assunto decididamente feminino, agora a margem para negociações alargou-se um bocado, e ver maridos que se dedicam à casa e as crianças enquanto as esposas lançam-se à selva do livre mercado e das atividades mais fundamentais para manutenção do bem-estar comum não é mais nenhum visão do apocalipse. Lee Myeong-hun faz um recorte ainda mais profundo acerca das novas acepções do que seria próprio de cada gênero e em “Missão Cruzada” junta à equação um suspense que só começa a destrinchar no segundo ato, quando o público já está completamente enredado pela história.
Em sua estreia, o diretor e Choi Young-lim, seu corroteirista, colocam Kang-mu, um ex-policial agora resignado e até satisfeito em cozinhar e limpar a bagunça de Mi-seon, a chefe da Delegacia de Investigação de Crimes Graves de Seul, entre uma e outra viagem na van escolar em que trabalha por meio período. Como já fizeram Doug Liman no superestimado “Sr. & Sra. Smith“ (2005) e James Cameron no quase esquecido True Lies (1994), Lee estica a corda um tanto no momento em que decide que é hora de passar da crônica social à natureza obscura de seu longa.
Amores podem ser como perfumes, que evolam sem que se perceba, embora sempre deixem seu rastro de olores ora adocicados, ora cítricos, quase azedos; como cores, luminosas feito o sol numa tarde de verão, ou tão lúgubres e escuras que tingem de morte o que deveria sembrar apenas o existir mesmo. Todo mundo já pensou em casar com a primeira namorada, ter com ela os filhos que ofereceriam amparo aos dois quando o sol da vida começasse a descer e a velhice fosse uma realidade inescapável — e depois dela a morte, serena e consagradora. Nove décimos da humanidade nunca saberão o que é isso, o que não quer dizer que a felicidade conjugal seja impossível, muito pelo contrário: quanto mais se abre o leque, mais aumentam as chances de surgir, afinal, a tampa da panela.
Essa é a sensação que se tem diante de Kang-mu e Mi-seon, quiçá feitos um para o outro, até que o passado dele torna-se uma ameaça não só para o casamento dos dois, mas para as gerações seguintes. A descoberta de um esquema que congrega generais suspeitos e trilhões de wons sul-coreanos desviados dos cofres públicos opõe a implacável detetive e o homem com quem divide os lençóis, e embora seja difícil acreditar que Mi-seon nunca tenha desconfiado da passividade mórbida de Kang-mu, Yum Jung-ah e Hwang Jung-min são capazes de explorar os meandros pouco óbvios da índole de seus personagens neste romance noirpós-moderno.
Filme: Missão Cruzada
Direção: Lee Myeong-hun
Ano: 2024
Gêneros: Ação/Comédia/Policial
Nota: 8/10