Muito tempo antes de Didi Mocó fazer sua célebre imitação do genial homem com H Ney Matogrosso, existiu uma banda que revolucionou a música brasileira. Na verdade, a banda ainda existe; discretamente, mas existe. No início da década de 1970, o Secos & Molhados, com seu nome de placa de empório de cidade pequena, conseguiu a façanha de passar de um conjunto udigrude performático experimental da noite paulistana para um imenso sucesso popular.
Em janeiro de 2022 completou 50 anos os ensaios iniciais da primeira formação que importa dessa lendária banda, composta pelo lobisomem Ney Matogrosso, o lusitano “dono da bola” João Ricardo e o meteórico fenômeno Gerson Conrad.
Até onde me lembro, o primeiro contato que tive com o grupo foi em algum momento da segunda metade da década de oitenta, em um livro didático de Língua Portuguesa, onde o autor usou “Rosa de Hiroshima”, indicando na legenda que se tratava de uma música do Secos & Molhados com letra de Vinicius de Moraes, e não um poema de Vinicius de Moraes musicado por Gerson Conrad. Certamente o autor era fã da banda, fãs fazem essas coisas.
“Rosa de Hiroshima” é a nona faixa do disco de estreia da banda, intitulado simplesmente “Secos & Molhados”, lançado em 1973. A revista “Rolling Stone Brasil” colocou esse trabalho na quinta posição em sua lista dos 100 maiores discos da história da música brasileira. Todos conhecem esse disco: é aquele com quatro cabeças servidas em bandejas na capa. Quatro? Mas o Secos & Molhados não é um trio? Sim e não. A primeiríssima formação, que ficou conhecida na noite paulistana por seus inusitados shows no Kurtisso Negro, no Bairro do Bixiga, era composta por João Ricardo, Fred e Pitoco e durou entre 1970 e 1971. Fred e Pitoco saíram em julho de 1971 e João Ricardo, criador do nome e do conceito da banda, precisou remontá-la. Primeiro encontrou o magnífico vocalista Ney Matogrosso, dono de uma das melhores vozes da MPB, e meses depois recrutou seu vizinho Gerson Conrad. O trio, refeito e turbinado, ganhou fama ao se apresentar no bar-café Casa de Badalação e Tédio, anexo do Teatro Ruth Escobar. O próximo passo era gravar um disco.
Para isso incorporaram uma quarta cabeça, a do baterista argentino Marcelo Frias, que havia participado da banda Beat Boys (sim, “beat” e não “beach” como aparece em muitos sites por aí), que acompanhou Caetano “muito lindo” Veloso na famosa apresentação de “Alegria, Alegria” no Festival da Record de 1967. Portanto, embora baterista, Marcelo Frias participou da Revolução da Guitarra que fez com que gente barra-pesada como Elis Regina, Jair Rodrigues, Edu Lobo e Gilberto Gil passasse inesgotável vergonha na infame Marcha Contra a Guitarra Elétrica (pelo menos dessa vez o Chico não foi). Apesar do trabalho impecável, Marcelo Frias deixou o grupo logo depois da sessão de fotos para a capa do disco. Não se sabe exatamente o motivo, mas sua cabeça rolou e o trio que se tornara quarteto voltou a ser trio. Um é João Ricardo, dois é pouco, três é ótimo e quatro ficou demais, mas não durou.
Segundo o pesquisador de música popular André Domingues, autor do livro “Os 100 Melhores CDs da MPB”, “Secos & Molhados combinava as influências do rock — principalmente do rock inglês dos anos 60 — e, em menor parte, do blues, com a atitude libertária propagada pelo tropicalismo, refletida na poética e no visual exuberante do grupo, que se apresentava com coreografias sensuais, roupas extravagantes e os rostos pintados”.
Rostos pintados? Sim, rostos pintados! A velha polêmica dos rostos pintados. De novo. Hoje em dia, tempos bárbaros nos quais medimos a importância de um tema pela quantidade de memes que gera, sempre que se fala em Secos & Molhados as duas primeiras coisas que vêm à cabeça é o “Vira” (influência para o “Vira, Vira” dos imortais Mamonas Assassinas? Assunto para outro texto) e o Kiss. O caso é que os fãs mais ardorosos do trio (incluindo talvez o autor do livro didático de Língua Portuguesa com o qual estudei no ensino fundamental) defendem a tese de que a pintura no rosto utilizada pela banda americana Kiss é uma imitação do Secos & Molhados. O principal argumento que utilizam é a turnê internacional que estes realizaram em 1974.
Não creio. Primeiramente porque o Kiss foi criado, em Nova York, em 1973. Claro que podem justificar que teriam incorporado a pintura depois, mas o fato é que há registros dos integrantes do Kiss devidamente maquiados antes de 1974, inclusive no célebre show que fizeram no Queens em dezembro de 1973. Beijinho no ombro para vocês, brazucas. Resta o último e implausível argumento de que Gene Simmons teria sido informado acerca do impactante estilo de um estranho grupo que lotava ginásios no Brasil e veio verificar, encantou-se e replicou a ideia. Muita teoria da conspiração para o meu gosto.
Em minha opinião, não houve influência ou imitação. Trata-se de uma questão de zeitgeist, o “espírito do tempo”. Na época, diversos artistas incorporavam elementos do teatro — não apenas maquiagem, mas também luzes, fumaça e pirotecnia — na música. Nem o Kiss nem o Secos & Molhados foram os únicos ou primeiros.
Ademais, a questão da pintura é secundária. São bandas muito diferentes, para públicos diferentes. Acho que o Kiss faz um rockão farofa da melhor qualidade, mas sua proposta estética está longe de ser superior à graça performática sofisticada do Secos & Molhados. Gene Simmons, embora seja um ótimo vocalista, só supera nosso querido Ney Matogrosso na fortuna, no cartel de donzelas defloradas e na extensão lingual (o mesmo vale para Mick Jagger, pelo menos no último quesito).
Após o segundo disco, os ginásios lotados e a turnê internacional, os membros do Secos & Molhados se separaram, ainda em 1974. João Ricardo, após duras disputas judiciais, garantiu sua condição de dono da marca e lançou o terceiro álbum em 1978, à frente de uma nova formação composta ainda por Lili Rodrigues, Wander Taffo, Gel Fernandes e João Ascensão. Nem três, nem quatro, mas cinco membros. Fizeram sucesso com a música “Que fim levaram todas as flores?”, mas esse retorno não teve vida longa. Só a numerologia explica. Um é João Ricardo, dois é pouco, três poderia dar certo, quatro é demais, cinco é um exagero.
O quarto disco, lançado em 1980, fracassou, apesar do Secos & Molhados ter novamente três membros oficiais, fora os músicos de apoio: o incansável João Ricardo e os irmãos César e Roberto Lampé. Mais um disco pouco executado viria em 1987, com a ajuda de Totô Braxil, e ainda outro em 1988, intitulado “A Volta do Gato Preto”. Mas o gato preto não voltou e se passaria uma década até o próximo álbum, que veio em 1999, quando João Ricardo se tornou uma banda de um homem só e lançou “Teatro?”, um disco solo sob o rótulo de Secos & Molhados. Só voltou em 2011, em parceria com Daniel Lesbeck, com o lançamento de “Chato-boy”. Em 2019 lançou “Barulho de Rock & Gesta”, nono e, até o momento, derradeiro trabalho da banda. O título por si só já entrega a ponte construída, levando da tradição da poesia de gesta medieval até o bom e velho rock n’ roll contemporâneo.
Com relação a Ney Matogrosso nem é preciso perguntar. Tornou-se um mito, colecionou sucessos como intérprete, dirigiu o megashow do RPM, deu respeitabilidade ao Barão Vermelho quando gravou “Pro dia nascer feliz”, foi mestre e amante do Cazuza, recusou-se a ser mais um artista de aluguel do governo, e, o mais importante, continuou magro e divo. Aplausos de pé!
Gerson Conrad ainda se apresenta como músico, e em 2013 lançou o livro de memórias “Meteórico Fenômeno”, onde narra os poucos e intensos anos em que esteve no Secos & Molhados. Uma curiosidade é o fato de que no livro não há fotos de João Ricardo, que não autorizou o uso de sua imagem. Ah, chato-boy!!
Só para constar: o baterista Marcelo Frias participou de gravações com o rei Roberto Carlos, o príncipe Ronnie Von e Gal “meu nome é Gal” Costa, ou seja, continua sendo o rapaz que anda com os músicos.
Seja como for, entre mortos e feridos, entre secos e molhados, salvaram-se todos. As flores não murcharam e “Rosa de Hiroshima” é eterna.