Em dezembro de 1945, Nelson Rodrigues (1912-1980) escreveu “Álbum de Família”, uma de suas peças mais rejeitadas, tanto que permaneceu nas gavetas da censura até 1967 — e, curiosamente, foi liberada na vigência de uma ditadura. A história de Nonô, que cede ao cerco incestuoso de dona Senhorinha, sua mãe, enlouquece e passa a correr nu pelas vizinhanças da fazenda onde se passa a trama, dando uivos de saudade e dor por seu grande pecado, até que a tragédia enterre de vez suas garras na carne daqueles infelizes. Portanto, não há nada de particularmente escandaloso em “O Lobo”, a fábula por meio da qual Nathalie Biancheri discorre sobre adolescentes em conflito com sua própria identidade, aprofundando-se numa doença mental ainda pouco conhecida entre leigos, a disforia de espécie, que leva o paciente a crer-se um bicho, quase sempre uma fera, em resposta a traumas recalcados de que não consegue se livrar.
A despeito da sufocante ânsia por se destacar em meio à tacanhice e à sobrevalorização do excepcional, do inimaginável, do fabuloso, todos queremos ter a vida o mais normal, o mais comum, até o mais previsível quanto se puder, e uma vez que chega-se a esse paraíso, em que as ilusões restam devidamente sepultadas, as neuroses evolam-se como o perfume das rosas no primeiro raio de sol e as mágoas, derradeiro refúgio da tristeza, somem como se cansadas de não mais causar dor, reflora a esperança da felicidade possível, condição pela qual tanto se luta, mas sói escapar-nos por entre os dedos, como se, no fundo, algum detalhe nefasto indicasse que não a merecemos.
A vida — ou o que sobra dela — erode-se por si só, num movimento que avança sem que nada mais se possa fazer além de cada qual tomar seu luto e suas lutas, lançar-se novamente à aventura do existir por outras sendas e tentar finalmente atingir a glória grande ou pequena que não se para nunca de buscar, malgrado a paralisia avassaladora, mas temporária, do sofrimento. Num só movimento, viver torna-se uma sucessão de luzes e sombras que se atraem e se repelem e se equivalem, subidas e descidas bruscas e repentinas como num brinquedo macabro, entradas e saídas de labirintos claustrofóbicos que se estreitam ainda mais conforme tomamos pé de nossas humanas limitações, agudizando a impressão de que no espírito do homem cabem mesmo todos os sonhos do mundo, mas nele encrustam-se igualmente muitas das côdeas que enxovalham o mundo para muito além da vã filosofia deste plano tão rasteiro.
As humanas misérias ressoam para Jacob, o Nonô de George MacKay, como a urgência de camuflar-se, de disfarçar sua natureza bovina sob a pele do lobo do título, até que surge-lhe a oportunidade de se curar e retomar sua essência humana, fonte de outro grande embate interno. Um dos melhores atores de sua geração, MacKay encontra no texto de Biancheri as excentricidades sublinhadas por Yorgos Lanthimos em “O Lagosta” (2015), e daí fica mais crível o potencial envolvimento romântico com a personagem de Lily-Rose Depp, sugestivamente batizada de Wildcat. Juntos, MacKay e Depp alertam o público sobre a intolerância, uma palavra que hoje todos conhecemos, cada vez mais em voga. Ninguém suporta o inferno da diferença do outro, ainda que louve suas próprias esquisitices.
Filme: O Lobo
Direção: Nathalie Biancheri
Ano: 2021
Gêneros: Thriller/Mistério
Nota: 8/10